20.12.13

A Governança da Terra na Prática: A Experiência do Programa TERRA em Angola


PROJECTO TERRA 

Apoio às instituições governamentais para a melhoria da gestão, da posse e administração de terras e dos recursos naturais, nas províncias do Huambo e Bié, Angola
(GCP/ANG/045/SPA)



aecid angola FAO


Introdução

A Governança deve ser a forma através da qual a sociedade faz a gestão do bem público e dos interesses individuais de cada membro de forma justa no que se refere tanto ao processo como aos resultados. A Governança dos recursos naturais deve, portanto, garantir que todas as funções dos recursos naturais sejam respeitadas e protegidas:
1) a função alimentar, garantindo a qualidade e a variedade dos produtos alimentares naturais,
2) a função económica, satisfazendo as necessidades de matérias-primas biológicas (madeira, fibras têxteis, etc), no sentido de acabar no futuro com a dependência da energia fóssil e com a produtividade do trabalho suficiente para permitir que os outros setores da economia possam crescer,
3) a função ecológica, protegendo e renovando os recursos naturais e os ecossistemas (terra, água, florestas e biodiversidade),
4) a função social, garantindo a dignidade dos modos de vida e o bem-estar das populações rurais e aqueles que vivem em outros ambientes (urbano, industrial, ...),
5) a função cultural, protegendo, desenvolvendo e transmitindo o saber-fazer no que se refere à agricultura e à gestão dos espaços naturais, bem como à cultura que faz parte deles.

A Governança refere-se à decisões que definem expectativas: uma mistura de expetativas tanto individuais como de toda a sociedade. As preocupações principais na hora de abordar uma "boa governança" devem ser: como as decisões são tomadas e por que, quem está a se beneficiar com elas e como essas decisões são finalmente implementadas... Na prática, isso é feito a partir de uma mistura de expectativas individuais que fazem parte de um cenário social/coletivo. A busca de equilíbrio entre os dois (individual – social/coletivo), e a atuação concreta ao longo desse caminho, é o que se entende como um processo que conduz à “boa governança”.

Embora esta palavra tenha entrado recentemente à la mode, há bastante tempo a FAO vem realizado várias experiências de campo neste sentido. Esta filosofia de processo baseado nas pessoas, nos seus direitos e na negociação entre atores, foi elaborada há mais de uma década atrás, e está sendo utilizado de forma prática e concreta em vários projectos implementados pelas divisões (FAO, 2005. Participatory and Negotiated Territorial Development (PNTD). http://www.fao.org/sd/dim_pe2/pe2_050402a1_en.htm) NRL, LEGN, ESW e NRC da FAO. A evolução recente do longo Programa TERRA da FAO em Angola apresentada neste artigo, deve ser vista como uma contribuição para a implementação das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, as Pescas e as Florestas no Contexto da Segurança Alimentar Nacional, que foram oficialmente aprovadas pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) no 11 de Maio de 2012.

A Governança em Prática

Reforçar a governança da posse e da gestão dos recursos naturais é um passo fundamental para se alcançar a segurança alimentar, o bem-estar das pessoas e o desenvolvimento econômico. No entanto, considerando só a dimensão da posse da terra, corre-se o risco de retratar uma imagem estática de uma situação muitas vezes dinâmica, deixando de fora as relações entre as pessoas e os recursos naturais em um mundo que é significativamente influenciado pelas pressões globais, relacionadas com às mudanças climáticas, às migrações humanas, à globalização econômica e política… Neste contexto, a gestão com base no território deve ser considerada, de modo a se promover uma melhor governança.

A gestão e utilização dos recursos naturais têm a ver com uma gama extremamente ampla de atividades práticas e atores envolvidos, em uma realidade em constante mudança, sendo muito difícil de retratar e formalizar. Abordagens de cima para baixo para a gestão e posse dos recursos naturais podem falhar no que se refere ao reconhecimento e proteção dessas formas de uso dos recursos naturais que são em muitos casos informais, mas essenciais para a segurança alimentar das pessoas mais vulneráveis.

Explorar o conceito da posse e da gestão da governança da terra em situações concretas de campo requer uma perspetiva diferente. Tendo em conta que estas são as atividades que mais influenciam e geram conseqüências sobre os meios de vida das populações rurais, o ponto de partida deve incidir sobre os atores que estão mais direitamente afetados: as populações rurais. As populações rurais dependem da gestão e uso dos recursos naturais para garantir a sua sobrevivência, segurança alimentar e geração de renda, que é produzida a partir da interação com os recursos naturais, convertendo-se esta interação nas suas tradições e valores culturais. Os atores locais são os mais adequados para garantir a proteção do meio ambiente a longo prazo.

Começar a discutir a governança com um foco nas pessoas implica, antes de tudo, reconhecer a sua diversidade e as assimetrias que existem entre elas: assimetrias de acesso aos processos de tomada de decisão, assimetrias nos processos de negociação… em poucas palavras: assimetrias nos processos de governança. As consequências evidentes dessas assimetrias são os desequilíbrios de poder que resultam em injustiças sociais, falta de desenvolvimento e conflitos. Em outras palavras, os desequilíbrios de poder entre os atores envolvidos na gestão da terra estão levando o mundo à situações de mais conflitos e pior governança.

O Programa TERRA em Angola

Em 1999, a pedido do Governo de Angola, o Serviço de Posse de Terra da FAO, iniciou uma série de actividades em estreita colaboração com a Direcção Nacional de Ordenamento do Território do Ministério da Agricultura (antigo DNDR). Essas atividades destinam-se a: (i) resolver conflitos de terra nos arredores de Luanda, e (ii) iniciar uma reflexão sobre questões de terra no país. Este foi um processo inicial de três anos que foi caraterizado e dificultado pela violência em curso no país.

Em 2002, quando a guerra terminou, o Governo de Angola iniciou junto da FAO um novo processo baseado no trabalho e reflexões feitas anteriormente, para a criação de um quadro jurídico para a gestão da terra e do ordenamento do território rural. Este quadro permitiu a fundação de um marco de desenvolvimento sócio-econômico na perspectiva da economia de mercado, considerando a crescente expansão urbana, os conflitos de terra em áreas urbanas e rurais e o regresso das pessoas deslocadas para suas terras após o final da guerra. A proposta para a atual Lei de Terras também foi discutida neste momento. O partido no poder (MPLA) e a sociedade civil organizaram sessões de discussão da nova lei de terras e, pela primeira vez na história de Angola, houve um projecto de lei, que foi colocado na internet para ser discutido publicamente como uma forma de envolver à sociedade civil no processo. A FAO acompanhou todo o processo através de apoios jurídicos e de um seminário de alto nível em outubro de 2003, onde foram apresentadas experiências concretas para a elaboração de políticas públicas. O seminário contou com a participação de membros de outros países, assim como de especialistas internacionais na matéria. Foi também nos anos 2003 e 2004, que a FAO apoiou organizações da sociedade civil em campanhas de sensibilização sobre a nova Lei de Terras, durante o processo de consulta pública. Em novembro de 2004 , após 6 meses de consultas, a nova Lei de Terras (n º 9/04 ) foi votada. Esta nova Lei introduziu o reconhecimento dos direitos consuetudinários das comunidades rurais em relação à terra.

Durante este período de pós-guerra, as famílias começaram a retornar aos seus locais de origem depois de 20 anos de exilio durante a guerra civil, embora ainda hoje muitos não tenham retornado. Os agricultores familiares reiniciaram suas atividades agrícolas, com escassos insumos e meios de produção, uma vez que a ameaça evidente de violência tinha diminuído. Em algumas áreas, os agricultores tiveram o apoio de algumas ONGs já existentes, mas a capacidade institucional era ainda muito limitada.

Em 2006, após uma série de atividades de campo, cujo objetivo foi a implementação e o teste da Lei de Terras no que se refere ao reconhecimento dos direitos históricos das comunidades rurais sobre a terra, e graças a vários debates e reuniões realizadas, foi possível demonstrar a importância de uma abordagem coerente para o desenvolvimento rural e agrícola, a ser implementado através de um serviço direto mais abrangente e de desenvolvimento de políticas.

Diante deste contexto, o objetivo geral da FAO foi apoiar às instituições de administração e gestão da terra a nível Provincial, inicialmente com experiências piloto em Huila e Bengo. Nos anos seguintes, essas atividades foram em seguida ampliadas para as Províncias de Huambo e Benguela.

Um Projecto TERRA de três anos (GCP/ANG/035/EC) foi então lançado, no final de 2006, visando a capacitação das instituições públicas encarregadas da gestão, uso e segurança dos direitos da terra. O projecto também respondeu a um componente de "Atualização do quadro legal" do Programa de Segurança Alimentar da UE, procurando articular o acesso à terra com a segurança alimentar. Este projecto foi fundamental para a implementação efectiva do quadro legal do acesso à terra o que, por sua vez, também contribuiu de foram concreta para o aumento do acesso à terra para as comunidades rurais e melhorou as condições de vida de vários grupos vulneráveis, incluindo uma comunidade indígena dos San (Mupenbati, província da Huíla), sendo este o primeiro grupo minoritário em Angola a receber um título de terra (Cenerini, C. 2008: Access to Legal Information and Institutions. Tales from Angola: San Land Rights in Huila Province - http://www.fao.org/Participation/Cenerini2008Angola.pdf).

O projecto também realizou as primeiras experiências piloto em inventário de recursos naturais, abordaram-se questões de gênero em relação à terra, e criou-se na Facudade de Ciências Agrárias de Huambo o Gabinete de Estudos para a Agricultura Camponesa – GEAC -, o único centro de estudos no país ligado a esta matéria. De fato, um dos principais pilares de apoio da FAO nestas questões baseou-se no princípio de que "o acesso seguro à terra e à água tem um papel muito importante na erradicação da pobreza, na redução da fome e na promoção do desenvolvimento econômica rural ", como foi afirmado durante a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR), organizada pela FAO em 2006, em Porto Alegre, Brasil.

Durante este percurso houve altos e baixo que são normais nestas situações. Houve Províncias onde o envolvimento das autoridades locais foi mais forte do que em outras, períodos em que “pessoas chave” dentro do governo foram “empurrando” a agenda ao nível central ou Provincial, momentos em que a comunidade de doadores teve um impacto maior sobre a agenda, momentos de resultados visíveis e muitos momentos de muito trabalho invisível e difícil.

No caso da província Hulia, várias condições fizeram o Programa TERRA muito visível em termos de resultados concretos: “pessoas chave” pró-ativas tanto em instituições governamentais como em organizações da sociedade civil, e uma rede relativamente solida de ONGs e OSCs contribuiramàs necessidades destas instituições de serem apoiadas na gestãode questões ligadas à governança da terra. Isto resultou em vários títulos emitidos, e muitos processos de emissão de título em preparação e/ou andamento. Isto também resultou em uma base sólida para uma abordagem inclusiva para a gestão dos recursos naturais. Um processo semelhante ocorreu também na província do Huambo, com um número importante de processos de delimitação de comunidades rurais realizados e a espera de homologação pelo Governo Provincial, e um primeiro título emitido em nome da comunidade Juila no final de 2008.

Ao final de 2009, estavam em andamento negociações para início de um projecto em seguimento e continuação ao projecto GCP035, de modo que não existisse interrupção entre um projecto e o outro. Todavia, por motivo diversos o novo projecto levou cerca de um ano após o término do anterior para iniciar. O apoio da FAO ao GoA em questões de terra continua até hoje nas províncias do Huambo e Bié (a região que tinha sido o foco da guerra civil), através de um projecto financiado pela Agência Espanhola de Cooperação (AECID). O mesmo teve prevista uma duração inicial de três anos, e iniciou em Janeiro de 2011. Em seguimento à algumas extensões, seu término está previsto para Abril 2014.

O Projecto Terra atual, financiado pela cooperação espanhola, tem um foco geográfico parcialmente diferente. A Província de Huíla não foi incluída, sendo as Províncias alvo Huambo e Bié (duas províncias vizinhas no Planalto Central de Angola). Este fato, obviamente, diminuiu o desempenho do programa no longo prazo, mas agora, depois de quatro anos sem apoio na província de Huíla, pequenos avanços estão acontecendo: outra comunidade Koi-San está a ser delimitada, uma campanha de divulgação da Lei de Terras está sendo realizado como parte do programa regular do Governo Provincial, e outros dois processos de reconhecimento de terras comunitárias estão sendo preparados para assinatura por parte do Governador Provincial.

Enquanto na província do Huambo as condições (pessoal treinado, protocolos de delimitação, etc) já estavam desenvolvidas, Bié foi uma área totalmente nova para questões de terra. A Província do Bié foi o coração da guerra, já que a UNITA teve seu bastião lá. Os efeitos da guerra ainda estão presentes a nível social, político, econômico e físico. Neste contexto, houve a necessidade de lançar um exercício de confiança e capacitação técnica e organizacional com instituições governamentais e não-governamentais. Na província, as ONGs e as OSCs são quase inexistentes: existem apenas algumas ONGs locais que trabalham como prestadores de serviços para algumas ONGs internacionais que encontraram dificuldades para trabalhar lado a lado com as instituições governamentais, devido à falta de capacidades, fracas capacidades de implementação e fraca comunicação e confiança entre os actores. Neste contexto de escasso reconhecimento de direitos e instituições governamentais e sociais fracas, o papel do recém-chegado Projecto Terra da FAO foi claro: posicionar a FAO como órgão de articulação entre as instituições governamentais e as poucas ONGs e OSCs.

No que se refere à criação das condições para melhorar o acesso e a segurança fundiária na Província do Bié, a estratégia foi implementada em quatro etapas:

1 . Formação do pessoal do Governo, das OSCs e ONGs sobre o quadro legal existente e a sua disseminação.
2 . Disseminação da Lei de Terras em comunidades rurais selecionadas.
3 . Formação dos técnicos das instituições governamentais e das OSCs e ONGs, sobre a Metodologia Participativa de Delimitação de Terras Comunitárias.
4 . Acompanhamento direto de dois processos de delimitação até a emissão dos correspondentes títulos. Os dois títulos (comunidades Katapi e Elumbi ) foram emitidos e assinados pelo governador em Novembro de 2013.


A Governança da terra na prática: Um exercício que requer tempo
Desde os primeiros títulos emitidos pelo Governo de Angola, em nome da comunidade Tchikala, província da Huíla (2001), seguido do primeiro título emitido em nome de uma comunidade Koi-San, também na província de Huila (2007), seguido pelo primeiro título emitido na província do Huambo, comunidade Juila (2008) e finalmente, os dois primeiros títulos emitidos recentemente na província do Bié (2013), passaram 12 anos. No primeiro, o país ainda estava sob a guerra civil, enquanto hoje Angola projeta-se para o futuro com uma das maiores taxas de crescimento entre os países africanos. No início, as ONGs e OSCs estavam extremamente relutantes em se envolver em quaisquer relações de trabalho com as instituições do Estado. As unidades de administração e gestão da terra estavam em condições muito precárias (até então nem sequer existiam em muitas Províncias) no início, mas agora os recursos humanos, as condições físicas e os salários melhoraram. O clima de desconfiança que existia foi reduzido, e a vontade de avançar juntos é mais real em várias províncias.

Os títulos de terra das comunidades são o ponto de referência inicial de um processo que visa obter representantes escolhidos pela comunidade para participar de uma forma mais sistemática nos exercícios de planeamento do uso da terra. Novamente, isso significa fortalecer não só a capacidade técnica dentro e fora das instituições do governo ao nível central e Provincial, mas também continuar a promover um diálogo inclusivo entre os diferentes parceiros, incluindo o setor privado. Isto é essencialmente um exercício de construção de confiança entre as diferentes partes interessadas em um determinado território. O objetivo é criar confiança entre os atores, e favorecer que as diferentes opiniões sejam respeitadas e tidas em conta para o bem-estar comum, juntamente com uma disponibilização de assistência técnica, onde FAO desempenha o papel de facilitador (FAO La facilitation pour la gouvernance territoriale, Rome 2013 - http://www.fao.org/docrep/018/mi008f/mi008f.pdf).

Estamos na fase final do Projecto TERRA atual, e as discussões sobre o futuro estão em curso. Anos de assistências técnicas têm permitido a introdução de diferentes questões no debate nacional. O objetivo é dar um passo a frente, considerando não apenas a governança da terra como uma ferramenta para proteger a Terra e os Recursos Naturais, mas como é o caso em Angola, continuar garantindo o acesso à terra pelos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, é crucial apoiar as comunidades no sentido de que estas desenvolvam as suas terras do ponto de vista sócio-economico. Neste sentido, é evidente a importância crítica do setor da agricultura familiar como forma única de alcançar a segurança alimentar em todo o país, e democratizar o crescimento econômico dada a ausência de um quadro jurídico e político dedicado, tal como existe em outros países. Com base nos estudos iniciais (http://www.fao.org/nr/land/projects-programmes/terra/en/) e conferências produzidos pelo atual Projecto Terra, a Agricultura Familiar é outra área de "governança" que terá de ser abordada, especialmente considerando-se que o Ano Internacional da Agricultura Familiar será celebrado em 2014.


Autores:
Txaran Basterretxea, Consultor FAO GCP/ANG/045/SPA
Paolo Groppo, Oficial do Desenvolvimento Territorial, NRL

Os autores querem agradecer também ao Senhor Francisco Carranza, Consultor da FAO GCP/ANG/045/SPA, Marianna Bicchieri, Assessora Técnica da FAO, ao Senhor Jordan Treakle, Consultor da FAO e a Senhora Ms. Margherita Brunori, Estagiária.