Destaques:
- Falta de água e mau escoamento dos produtos são os principais entraves ao desenvolvimento da agricultura no Fogo
- Mulheres são participantes activas na associação de agro-criadores, embora poucas tenham posse da terra
- Pequena indústria de transformação agro-pecuária leva marca do Fogo a mercados internacionais
Por acaso, temos algumas mulheres que são donas de parcelas de terrenos irrigados, e são membros da associação. Não são maioritárias na associação, mas são em bom número, e participam, exigem e reclamam o que está mal, sobretudo a distribuição de água. Aliás, não sei se está a perceber que as mulheres já estão a tomar a dianteira nesse processo.
Estão?
Estão mais bem informadas, estão mobilizadas, até as organizações não governamentais e governamentais estão a dar a prioridade nos projectos às mulheres, sobretudos às mulheres mães-chefes de família.
Acha que a situação se vai inverter com um predomínio das mulheres nos centros de decisão no meio rural?
As mulheres têm jeito e estão bem preparadas para participar nesse processo de desenvolvimento de Cabo Verde.
No Fogo, como vê a questão da equidade de gênero no acesso à terra e à água? Há desigualdade?
Os homens racham as pedras, labutam com a terra, e normalmente as mulheres ocupam-se mais do trabalho de apoio ao homem. Em Santiago sim, parece-me que as mulheres fazem tudo no campo. No Fogo, é diferente. Não há muitas mulheres a participar nas actividades ligadas à terra, e pela mesma razão muito poucas têm a posse directa da terra. Aliás, o Fogo tem uma condição particular em Cabo Verde: as questões fundiárias cingem-se a poucas pessoas, temos grandes proprietários de grandes parcelas.
Porque é que ainda é assim?
Foi o ultimo bastião do colonialismo português. A tradição diz que os filhos-homens herdam as terras para que não se faça o parcelamento para outras pessoas. As mulheres quando casavam, embora tendo direito, não ficavam com a posse. É uma questão cultural, que se justifica pelo não parcelamento dos terrenos. No Fogo, há apenas grandes propriedades.
E graças a essa situação particular, imagino que não haja grandes conflitos por causa das terras?
Não há conflitos em termos de utilização da terra. Eu estava exactamente a defender lá na sala (no atelier de Maio de 2010, na Praia) que há uma relação de amizade entre os donos da terra e os que trabalham a terra, são compadres. Conseguem resolver os seus próprios conflitos sem ter que passar pelas autoridades.
Há uma relação de confiança, e noto até que os rendeiros fazem o que bem querem da terra, tiram o que precisam e levam ao proprietário o que bem entenderem, e o que acharem que devem dar. Os proprietários não exigem.
São Vicente e Sal são mercados preferenciais
Chã é um caso à parte?
Em Chã, tudo é propriedade do Estado, propriedade municipal. Há muita gente que tem posse, por aforamento, e vai passando por herança essa posse, de forma ilegal. Aí prevalece essa situação. Embora custe muito fazer o trabalho agrícola naquela zona por causa da jorra, as terras são férteis. Produz bem.
A ilha do Fogo continua a enfrentar grandes desafios para fazer desabrochar a sua agricultura?
Temos dois grandes problemas para resolver: a água e a distribuição dos produtos agrícolas de regadio. Temos uma empresa inter-municipal, com vocação meramente comercial, a explorar a água. Na nossa associação temos outra filosofia na utilização de água, e temos em conta alguns aspectos sociais. Neste momento, temos alguns pequenos conflitos devido a essas diferentes filosofias, mas penso que tudo vai ser ultrapassado com as novas estruturas de distribuição de água. Já temos furos, e estamos a construir os reservatórios de água, depois as condutas. Vi no jornal que o Governo já assinou o contrato com as empresas que vão fazer as novas estradas no Fogo e que irão aplicar a nova rede de água, a nova tubagem.
Quais os concelhos que têm mais problemas com a água destinada à agricultura?
Santa Catarina e São Filipe, na zona sul, em que há mais extensão de área cultivada. O problema tornou-se maior com a implementação do projecto da vinha de Maria Chaves, sob responsabilidade dos padres Capuchinhos. É um projecto de grande envergadura, que consome grande quantidade de água e que acaba por afectar grandemente a distribuição de água aos outros produtores, sobretudo na área sul.
O outro problema do Fogo, dizia, é a distribuição dos produtos.
Sabe que quando o Fogo produz, produz mesmo. Nem actualmente com a produção baixa, o mercado consegue consumir tudo. Este ano, há uma grande produção de caju e manga, chegamos a comprar manga por cinco escudos. Eu tenho uma empresa de transformação de doces, com um grupo de mulheres, e fizemos um bom stock de doces. Os agricultores têm lucro porque com a fruta é só apanhar e distribuir.
Já com os produtos hortícolas temos mais problemas: o mercado não consome e não há escoamento. Às vezes, não há transporte regular Fogo-Praia ou Fogo-São Vicente, que é o maior centro urbano consumidor. Praia tem concorrência dos produtores de Santiago, embora também consuma. Mas os mercados preferíveis são São Vicente e Sal e para aí não há ligação marítima regular o que dificulta bastante a distribuição dos produtos dos horticultores.
O Millenium Challenge Account pretendia construir um Centro de recolha e tratamento de produtos agrícolas no Fogo, mas com a descida do dólar o projecto ficou adiado. O Governo parece que está a pensar também nisso para o concelho de São Filipe, o que seria uma grande ajuda para os horticultores, já que se teria condições de frio para não deteriorar os produtos, etc.
Nesse sentido, concorda com alguns dirigentes que dizem que a ilha do Fogo, apesar do potencial que tem, continua esquecida e à margem do investimento?
Não diria que é esquecida. A ilha ainda não é devidamente explorada por causa da problemática da água. A própria orografia do Fogo não ajuda e a quota de água explorada localiza-se quase toda junto ao litoral. Para se elevar ao nível, por exemplo, de 600 metros custa muito. Mas tudo leva a crer que a nova rede vá melhorar bastante. Mas é claro que ainda estamos a uma grande distância de se poder explorar toda a potencialidade agro-pecuária do Fogo. Para se chegar a esse ponto, exigem-se investimentos elevadíssimos.
Outro sector importante na ilha é a pecuária.
É outra actividade geradora de rendimento da ilha. Cria-se mais os caprinos, bovinos, também as ovelhas, e, em menor quantidade, os suínos. Temos depois a transformação dos lacticínios. O Fogo ganhou uma visão nesse processo. Neste momento, já temos uma empresa, a SuiFogo, que lançou há dias o queijo de Cutelo Capado, pasteurizado e com uma embalagem fechada a vácuo, de forma a poder resistir algum tempo.
Essa é outra questão que se põe aos produtores: apresentar produtos de qualidade e com garantia de segurança.
A SuiFogo apareceu como parceira da Associação dos Produtores Agro-pecuários para atender às necessidades de distribuição e comercialização. Os produtores não podem produzir e comercializar ao mesmo tempo. A SuiFogo tem um mercado para colocar os produtos, o que estimula a produção. E valoriza os produtos, dando um tratamento, embalando e colocando os rótulos e ocupando-se da comercialização.
Quanto ao controlo de qualidade, o Fogo não tem um laboratório,mas os produtos são inspeccionados por técnicos. Primeiro, temos o problema bicudo da água para resolver, depois a distribuição e, numa terceira oportunidade, teremos que qualificar os produtos do Fogo para terem uma aceitação nacional, e até internacional. O doce, o café e o vinho já têm, aliás, aceitação internacional.
Para si, o que é que contribui, a nível humano, para que a ilha tenha uma tão boa e diversificada produção agrícola?
Creio que é tradicional do Fogo. A gente do Fogo já sabe que não tem outros recursos, outros meios para se desenvolver que não sejam a agricultura, a criação de gado, e o turismo. Não temos fábricas, não temos nada, por isso viramo-nos para a agricultura como nosso modo de viver.
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