14.6.10

“Se insistirmos na formação, vamos resolver todos os problemas de desigualdade”

Entrevista com Oumar Barry, coordenador do projecto de ordenamento e valorização da Bacia Hidrográfica de Picos e Engenhos, em Santiago.

Destaques

•Primeiro projecto do tipo em Cabo Verde é o de Picos e Engenhos
•População é beneficiada através do trabalho desenvolvido pelas associações locais
•Projecto das bacias permite rentabilizar produção agrícola
•Mulheres são parte activa das obras realizadas nas comunidades e nas ribeiras


Quando começou este projecto?Os projectos de ordenamento e valorização da Bacia Hidrográfica existem em várias ilhas, na seqüência da política actual para a modernização da agricultura que está a ser implementada pelo Governo, através do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos.
O nosso projecto em Picos e Engenhos começou em 2005. É o primeiro projecto deste tipo a iniciar e está já em curso. Mas, este ano, está previsto o arranque de outros cinco projectos.

Para quem não tem conhecimento nesta área, pode explicar o que é uma bacia hidrográfica?
Uma bacia hidrográfica é uma área geográfica em que a água cai numa área delimitada e se encontra no mesmo ponto para escoar para o mar. Normalmente, são ribeiras ou podem ser um conjunto de ribeiras.

E no vosso projecto que tipo de intervenção fazem nessa bacia?
Antes de mais, o projecto faz parte dos Grandes Programas do Governo na luta contra a pobreza no meio rural. Deste modo, o projecto tem como objectivo a mobilização, stockagem e distribuição de água para rega, a protecção do meio ambiente, a modernização da produção agrícola, a promoção da comunidade rural através de associações compostas pelos beneficiários do projecto.
No nosso projecto, o que fazemos primeiro é explicar às pessoas que trabalham e moram na bacia os objectivos do projecto, depois envolvemos a população, organizamo-la em vários grupos em função das ribeiras que constituem a bacia hidrográfica, que são as sub-bacias.

Como beneficiam exactamente a população?
A nível de cada ribeira, promovemos a criação de uma ou duas associações em função do tamanho da ribeira ou da vontade da população. A associação é toda organizada: tem assembléia-geral, conselho de direcção, todos os órgãos. Depois, identificamos, com a população, os trabalhos que devem ser feitos na sua área e os problemas. Definimos então o trabalho que vai ser feito, priorizamos o trabalho, definimos um custo financeiro e assinamos um contrato de execução com as organizações. É uma acção integrada de desenvolvimento, em que lidamos com tudo: distribuição da água, conservação dos solos, introdução de culturas, pecuária, silvicultura, formação, informação.

E fazem alguma distribuição de água e das terras?
Não, nós não mudamos a estrutura. Cada agricultor tem a sua parcela, e tanto pode ser proprietário ou rendeiro, mulher ou homem. O que nós fazemos é procurar o agricultor e perguntar se aceita mudar a técnica de produção para ganhar mais. Para isso, identificamos a área em que trabalha e os seus problemas, e propomos as soluções. Mas ele não vai trabalhar sozinho, e sim em conjunto com os outros agricultores.

Constroem, pelo que me diz, reservatórios, sistemas de bombagem de água. E rega gota-a-gota já chegou a Picos Engenhos?
Queremos instalar esse sistema e ter água para 160 hectares de regadio gota a gota. Actualmente, temos água mobilizada para 294 hectares.

Em sistema de regadio?
Antigamente aquela área era de sequeiro, ou era uma área que perdeu a água de rega e se tornou sequeiro. Mas agora queremos transformar outra vez em área de regadio.

No trabalho que fazem com as associações já integram a abordagem de gênero?É normal que falemos de gênero - em Cabo Verde, a maioria dos agricultores são mulheres. A relação que temos na bacia é de 53% de mulheres para 47 por cento de homens.

As estatísticas vêm mostrando que, de facto, há cada vez mais mulheres agricultoras e que os homens estão a abandonar a actividade.
Nós temos forçosamente que trabalhar com as mulheres. Até a associação que temos promovido, tem mais mulheres associadas do que homens. É verdade que na direcção da associação há uma persistência dos homens, mas mesmo assim temos muitas mulheres nos órgãos de direcção. E em cerca de 43 por cento das associações os presidentes são mulheres.

De facto, as mulheres estão mais presentes na agricultura mas isso não impede que continuem a ter menos direitos.
Não, eu não reflicto assim. Não digo que a mulher não tem o mesmo direito que o homem. Na lei cabo-verdiana, o homem e a mulher têm os mesmos direitos no meio rural.

E na prática?
Na prática, o direito é o mesmo. Mas o homem tem sempre a tendência a impor-se, quer mostrar que pode fazer melhor do que a mulher. No projecto, eu tenho visto o contrário. As melhores associações têm mulheres presidentes. Temos associações empreiteiras, em que as grandes obras, reservatórios de 2000 e 4000 mil metros cúbicos de água, são feitas por mulheres. Essas mulheres pedreiras fazem um trabalho muito melhor, em termos de perfeição, do que pedreiro tradicional. Na bacia de Engenhos, a maior parte da mão-de-obra contratada pela empresa portuguesa que está à frente das grandes obras do projecto é feminina.
Não podemos esquecer, que antigamente, no meio rural, os homens tinham mais escolaridade, e a escola é sempre um instrumento de dominação. Olhando hoje para os jovens agricultores, homens e mulheres que já têm a mesma formação prática e o mesmo grau de escolaridade, vemos nitidamente que essa disparidade começa a desaparecer.

E a tendência é para que venha a desaparecer por completo?
Eu acho pessoalmente que o problema da desigualdade no meio rural deve ser combatido com a formação. Se insistirmos na formação, vamos resolver todos os problemas de desigualdade que existem, já que a formação permite à mulher ter uma condição de trabalho igual à do homem.

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