7.9.07

Quilombolas ganham voz no campo

Com força crescente e amparados pela lei, remanescentes de quilombos lutam para reaver terra dos antepassados

Por: Roldão Arruda, "O Estado de S. Paulo", Brasil

24/12/2006

Foto: Muratuba, Brasil (Credit: Rita Vaz da Silva)

Depois dos sem-terra, dos povos indígenas e dos atingidos por barragens, um novo grupo ergue a voz em busca de direitos sobre a terra, aumentando os focos de tensão na zona rural. Agora são os quilombolas - nome dado aos remanescentes de antigos quilombos, constituídos por comunidades negras durante o período da escravidão e também depois que o regime escravocrata foi abolido.

O último atrito ocorreu na quarta-feira, quando 32 famílias quilombolas da comunidade de Tracoateua, no Pará, derrubaram uma torre de transmissão de energia elétrica erguida pela Companhia Vale do Rio Doce. Exigiam compensações pela construção de um mineroduto.

Em levantamento recém-concluído pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) verificou-se que estão em andamento 463 processos nos quais os quilombolas cobram o reconhecimento legal das terras que ocupam. Na maior parte dos casos também reivindicam a devolução de áreas ao redor, que teriam pertencido aos seus antepassados. Trata-se de uma quantidade expressiva de pedidos, cuja execução implica na desapropriação de terras em diversos Estados. Mas mesmo assim ela sinaliza apenas parte do problema.

Ninguém sabe ao certo quantos quilombos existem no País, mas é possível ter uma idéia a partir de um outro levantamento, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), encarregada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de coordenar o projeto Brasil Quilombola. “Pela nossa base de dados, são 3.250 comunidades quilombolas, com cerca de 2,5 milhões de pessoas”, diz Carlos Trindade Santos, da Subsecretaria de Políticas para as Comunidades Tradicionais.

Na maior parte dos casos são comunidades pobres, com baixo grau de instrução, pouco poder de pressão e que sobrevivem com o apoio do assistencialismo. A novidade é que estão fortalecendo as articulações entre elas e com outros movimentos, para ganhar força política.

SEM-TERRA

Ao participar, dias atrás, de um encontro de movimentos sociais em São Paulo, o quilombola Antônio dos Santos, da Coordenação dos Remanescentes de Quilombos, afirmou: “O Brasil tem muitas terras, guardadas por poucas pessoas. Estamos organizando os quilombolas e procurando nos juntar com os índios e os sem-terra para mudar isso. ” Santos mora no Quilombo da Caçandoca, em Ubatuba, no litoral paulista. Esse nome é bastante conhecido na comunidade por ter sido o primeiro quilombo beneficiado com um decreto de desapropriação de terras por interesse social.

Há 43 anos seus moradores disputavam com uma imobiliária os direitos sobre uma área de 210 hectares, de frente para o mar e dentro da Mata Atlântica. Em setembro, Lula pôs fim à disputa com um decreto de desapropriação da área, que acaba de ser devolvida às 53 famílias.

Ao todo, o pessoal da Caçandoca reivindica 890 hectares no litoral. Mas a outra parte da área ainda está sob disputa.

O direito dos quilombolas ao território que ocupam foi assegurado pela Constituição de 1988, no artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias. Mas foi só em 2003 que Lula, cumprindo promessa de campanha, regulamentou a lei.

Por meio do Decreto 4.887, ele definiu como devem ser os procedimentos para identificação, reconhecimento e titulação das terras. Coube ao Incra conceder o título de propriedade.

A mudança tende a acelerar os processos de legalização das terras dos quilombos. Em 2004, foram concedidos 2 títulos de propriedade; em 2005, saíram 4; e neste ano, segundo o Incra, 14. São todos títulos de propriedade coletiva, ou seja, para a comunidade, não para as famílias, como na reforma agrária.

Nestes três anos, o volume de terras tituladas já soma 28.725 hectares, para 1.947 famílias. Parece bastante, se comparado a períodos anteriores, mas, por outro lado, também parece uma parcela ínfima diante do que se reivindica. É difícil definir quanta terra será preciso para atender à demanda - depois de reconhecidos, os remanescentes ainda podem alegar que as terras vizinhas eram ocupadas por seus antepassados. Se estudos técnicos e científicos confirmarem, poderá ser requerida a retomada das terras.

Em Goiás, o Quilombo do Calunga, o maior do País, com 1.200 famílias, reivindica 243 mil hectares, acendendo focos de tensão. Em Conceição da Barra, Espírito Santo, outras 1.200 famílias disputam com a Aracruz, produtora de celulose, uma área de 60 mil hectares.

Há tensão em Nossa Senhora do Livramento, Goiás, onde fazendeiros contestam a concessão de 18 mil hectares ao Quilombo Mata-Cavalo. No Rio, na Restinga da Marambaia, quilombolas brigam na Justiça por uma área de preservação na qual a Marinha construiu uma base.

O PFL vem contestando a constitucionalidade do Decreto 4.887. Do outro lado, os quilombolas tentam se organizar para acelerar as desapropriações.

4.9.07

Livro explica reforma agrária e aborda conflitos rurais; leia capítulo

Fonte: Folha Online, Brasil

Publicado a 23 de Abril de 2007

Periodicamente, o Brasil é palco de invasões de terra, protestos, que alcançam projeção internacional em torno da questão agrária. O país viveu mais um "Abril Vermelho", quando protestos lembraram o massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, em 17 de abril de 1996, quando 19 sem-terra foram mortos.

A cada ano, mais um plano fundiário promete mudar a situação e não apenas sem-terra protagonizam tais histórias, mas também índios, quilombolas e minorias que querem terras.

O livro "A Reforma Agrária", da Publifolha resgata os principais aspectos de uma das questões mais complexas da história política brasileira. Leia abaixo capítulo do livro.

Com uma abordagem atual, a obra não cai no "teoricismo" e apresenta o que acontece no campo e na política brasileira em relação ao tópico.

Os governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva com suas políticas para a questão agrária são um destaque do livro.

Eduardo Scolese, o autor do livro, é repórter da sucursal da Folha em Brasília e cobra a questão agrária há anos.



"A Reforma Agrária"
Autor: Eduardo Scolese
Editora: Publifolha
Páginas: 112
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha



Introdução

Na tarde de 4 de fevereiro de 2003, pouco mais de um mês após Luiz Inácio Lula da Silva ter assumido a Presidência da República, um grupo de aproximadamente 400 sem-terra ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) bloqueou uma estrada no interior de Alagoas e manteve refém por cinco horas um secretário estadual de governo.

No dia seguinte à barricada, fotos nas primeiras páginas dos jornais mostraram tais sem-terra munidos de pedaços de pau, foices e facões, expondo um clima de tensão no campo deixado como herança por seguidos governos e que marcaria pelo menos os dois primeiros anos da gestão de Lula.

Entre os anos de 2002, o último de Fernando Henrique Cardoso na Presidência, e 2003, o primeiro de Lula no Palácio do Planalto, o número de famílias sem terra acampadas1 à espera de um lote saltou de 60 mil para 200 mil; as invasões de terra avançaram de 103 para 222; e os assassinatos motivados por conflitos fundiários passaram de 20 para 42.

A reforma agrária no Brasil, muitas vezes anunciada, foi mais uma vez apontada como um compromisso de governo. Uma prioridade que, assim como na gestão FHC (1995-98 e 1999-2002), passou a caminhar a reboque das pressões dos movimentos e demais entidades do campo. Ou seja, tudo feito às pressas, deixando de lado um suposto planejamento qualitativo.

De um lado, a revolta dos fazendeiros com as seguidas invasões. E, de outro, a decepção dos sem-terra com as promessas não cumpridas e o acúmulo de famílias vivendo debaixo de barracos de lona. Algumas delas, aliás, acampadas pela falta de emprego nos centros urbanos, enquanto outras sendo usadas como instrumento de pressão dos movimentos sociais contra os governos estaduais e o governo federal.

No Brasil, a concentração fundiária (muita terra em nome de poucos proprietários) remonta à criação das capitanias hereditárias, no início da colonização portuguesa. A partir disso, o que se viu em relação à reforma agrária foram seguidas tentativas de realizá-la ou de impedi-la.

A realidade é que a demanda por terra no país tem permanecido acima da capacidade e da vontade de realização dos governos. No segundo mandato de FHC, pelo menos 800 mil famílias (cerca de 3,3 milhões de pessoas) preencheram fichas nos Correios para concorrer a um lote de terra. Em seus oito anos de governo, porém, pouco mais de 300 mil famílias foram assentadas.

O campo brasileiro, apesar de o país ter passado nas últimas décadas por mudanças sociais, políticas e econômicas, aparece num mesmo cenário explosivo, com os trabalhadores rurais se organizando em movimentos, entidades e sindicatos; os fazendeiros criando associações para defender seus interesses; e as leis, desde 1850, sendo aprovadas tanto para acelerar como para frear as políticas de reforma agrária.

No dia-a-dia do país, quase que de forma banalizada, tornaram-se rotina as invasões a fazendas e a prédios públicos, os saques de alimentos (principalmente no Nordeste), as barricadas nas estradas, os assassinatos de trabalhadores rurais e a conseqüente impunidade dos criminosos, a criação de milícias armadas de fazendeiros, o desrespeito à Constituição, a grilagem2 de terra e a manutenção de trabalhadores em regime análogo à escravidão, além do ritmo lento dos governos para a realização de uma necessária reforma agrária (ou seja, a distribuição de um pedaço de terra para milhares de pobres que nasceram e ainda vivem no campo). A seguir, em breves páginas, uma tentativa de resumir a origem, os desdobramentos e a conseqüência de tudo isso.

1 Tratar de acampamento de trabalhadores rurais, na prática, é falar em precariedade e falta de infra-estrutura básica, como água tratada, energia elétrica e rede de esgoto. Cada família recebe uma cesta básica a cada quatro meses, mais ou menos. Homens, mulheres e crianças vivem debaixo de barracos de lonas pretas, sob o sol do dia e o frio da noite, localizados, em sua maioria, à beira de estradas nordestinas. Só em Pernambuco havia cerca de 20 mil famílias nessas condições ao final de 2003, segundo o governo federal.
2 Grilagem é o processo de apropriação de terras públicas e alheias por meio da falsificação dos títulos de propriedade. A origem do termo é a seguinte: primeiro o fazendeiro falsificava a escritura de uma determinada área. Em seguida, para dar uma aparência antiga aos documentos, colocava a papelada em uma gaveta cheia de grilos. Corroída e amarelada por substâncias liberadas pelos insetos após cinco semanas, as escrituras pareciam autênticas.