10.9.09

Cabo Verde: “Abordagem de Género não é um instrumento de enfeite, mas de planificação”

Entrevista com Alayde Diaz, Técnica superior da Direcção Geral do Planeamento, Orçamento e Gestão, do Ministério do Ambiente, Recursos Marinhos e Desenvolvimento Rural.
Cabo Verde tem tido muitos ganhos na integração da abordagem de género em diferentes sectores do país. Mas na agricultura a situação da mulher ainda é “muito difícil”, conta Alayde Diaz do MADRRM. As mulheres têm menos acesso às terras de regadio do que os homens e as famílias chefiadas por elas têm mais insegurança alimentar. O Ministério tem procurado inverter essa tendência,mas a técnica superior da Direcção Geral do Planeamento, Orçamento e Gestão acredita que vai levar muito tempo para se sentirem os resultados. Alayde Diaz considera que, antes de mais, o próprio Ministério deve abraçar a abordagem de gênero na sua planificação, identificando actividades que ponham fim aos desiquilíbrios.

Qual a situação de Cabo Verde em termos da integração da questão Género na gestao fundiária e da água?

No geral, temos muitos ganhos na questão da integração na abordagem de género no país, principalmente a nível do sector da educação. Há uma certa paridade a nível do ensino básico. A nível do ensino secundário, há alguma diferença: as raparigas estão em melhor posição que os rapazes, temos mais raparigas e em superioridade em relação ao sucesso escolar.
A legislação é a favor da equidade de género. Há algumas situações na legislação que são mesmo de discriminação positiva. A nível da participação ainda há muita coisa a fazer. As mulheres têm uma forte participação a nível doméstico e que condiciona a participação a nível público.
Alguns estudos e inquéritos feitos no país revelam que as mulheres são mais controladas, por exemplo, pelos maridos nas suas relações sociais. Elas têm alguma limitação a nível do acesso aos recursos financeiros e na gestão dos recursos financeiros no lar. Não há reconhecimento do poder por parte do companheiro para elas tomarem a decisão sobre a saúde, as compras, as visitas aos familiares. Tudo isso já condiciona a participação delas a nível público. Isto vê-se, por exemplo, na proporção de membros do Parlamento. Actualmente, temos na Assembleia Nacional 79 por cento parlamentares do sexo masculino.
Muito embora tenhamos tido alguns ganhos, entre 2003 e 2008, em termos de participação da mulher no espaço público. A nível do poder legislativo passamos de 11% para 21%, no poder executivo, nas chefias dos Ministérios, passamos de 20% para 36%. No campo judicial, a proporção de mulheres procuradoras passou de 15 para 21 por cento.

Na nossa visita de campo, no último dia do atelier, encontramos uma agricultora que disse que, em casa, ela e o marido ganham ambos um salário, mas só ela arca com todas as despesas domésticas e não sabe sequer o que o marido faz com o seu dinheiro. Isto reflecte a situação das mulheres no mundo rural?

Reflecte aquilo que acabamos de falar sobre a gestão dos recursos financeiros. Os dois trabalham e moram na mesma casa. Mas é só a mulher que fica responsável pelas despesas familiares.
De facto, em Cabo Verde ainda não há comparticipação das responsabilidades dentro do lar. No meio doméstico, o homem controla, apesar de serem casados. No bolo do rendimento, a mulher controla aquilo que leva para casa, mas já não controla o dinheiro do marido e, por acréscimo, é a mulher que se responsabiliza por todas as despesas do lar, não só a dos filhos como as do marido.
A situação da mulher na agricultura é um bocado difícil. Apesar de existir, em número, mais mulheres chefes de exploração, elas estão em desvantagem em termos de terras de regadio, quer no número de explorações, quer no tamanho da área explorada. No sequeiro, mulheres e homens têm o mesmo número de terras, mas mesmo assim área dos homens ainda é superior.
Porque é que há mais homens a trabalhar no regadio? Tem mais vantagens?
O sequeiro é aquele tipo de agricultura que usa a água proveniente da chuva mas da chuva que cai naquele momento. O sequeiro é a forma de exploração da terra onde se recorre a água já acumulada, proveniente das chuvas, que pode ser encontrada nos poços, nos tanques ou nos grandes depósitos.

Ou seja, o regadio é mais previsível? O sequeiro depende mais do clima?

Depende mais do clima e da quantidade de chuva que cai. O regadio já implica a pessoa fazer outros investimentos, por exemplo, ser dona de um poço, um depósito, um tanque, uma moto-bomba. O regadio está ligado, sobretudo, com o acesso à água. Requer maiores investimentos, maior poder econômico e os homens é que têm esse maior poder econômico.

É também mais lucrativo?

Sim. A agricultura de regadio é mais virada para a comercialização, enquanto o sequeiro é mais virado para o auto-consumo, não se obtém rendimentos.
O Ministério está a fazer alguma coisa para inverter essa tendência? Atrair as mulheres mais para o regadio, ou seja, proporcionar-lhes mais rendimento?
O Ministério tem vários projectos com uma abordagem da integração de gênero.A terra, a água o trabalho em sequeiro e, sobretudo, em regadio também depende da posse de terra e do acesso à água, e são questões ainda muito complexas e que vão durar algum tempo a ter resultado. O facto de o país ter assinado este projecto com a FAO já mostra alguma vontade de resolver esta questão. O Ministério e o país em geral tem consciência das dificuldades que as mulheres enfrentam no sector da agricultura.

O que é preciso mudar, principalmente?
Os principal desafio é entender que Género não é apenas uma questão das mulheres. É fazer com que quem estiver em desequilíbrio fique numa posição mais equilibrada, seja em relação ao homem ou à mulher.
Entendendo essa perspectiva, teríamos um segundo desafio: fazer com que a planificação do Ministério seja assente na integração da abordagem de gênero para que, no fim da implementação dos projectos, se consiga ver os ganhos obtidos. Identificando bem quem está em desequilíbrio podemos identificar que actividades devemos realizar para resolver esse desequilíbrio. Colocando essas pessoas em actividades direccionadas, vamos ter impactos e resultados direccionados também.
O maior desafio é esse: que a abordagem de gênero não seja apenas um instrumento de enfeite, mas sim um instrumento de planificação, que permita melhorar quer a situação da mulher, quer a do homem. No caso da agricultura precisamos melhorar, de facto, a situação da mulher.

Cabo Verde tem dados estatísticos desagregados por sexo. Os dados mostram realmente essa desigualdade no mundo rural?

Cabo Verde tem dados desagregados por sexo em quase todas as áreas: na saúde, na educação, do sector da justiça, indicadores que nos revelam toda a participação do homem e da mulher.
Na agricultura também temos dados desagregados por sexo. No primeiro Recenseamento Agrícola de 1988 o Ministério, juntamente com o ICIEG, já fez uma análise dos dados na perspectiva da mulher. Na altura tínhamos aquela abordagem da mulher no desenvolvimento. Com o segundo recenseamento, o Ministério e o ICIEG analisaram os dados e traçaram um perfil do Género na agricultura, mostrando- nos situações díspares no acesso aos recursos, quer à água, à terra e aos meios de produção.
O trabalho da task-force, como está a correr?
Eu penso que deve ser considerado como um ganho. Conseguimos pôr pessoas de diferentes sectores, relacionados com a problemática da água, terra e da questão de gênero, quase há mais de um ano, a trabalhar regularmente, a analisar os produtos que resultam das actividades do projecto. Discutimos as consultorias que foram realizadas, damos orientações para a melhoria. O principal ganho deste projecto é a constituição e o trabalho da task-force.

6.9.09

Moçambique: Maior desafio é mudar a mentalidade dos homens e das lideranças

Entrevista a Domingas Sequeira, Direcção Nacional de Serviços Agrários do Ministério da Agricultura de Moçambique

Destaques

  • Equidade de género já está contemplada nas estratégias do Ministério da Agricultura
  • A abordagem é integrada nas acções, mas, por vezes, os chefes não aprovam certas actividades destinadas somente a mulheres
  • No mundo rural e nas comunidades, a mentalidade começa a mudar, mas ainda há muito trabalho de sensibilização a fazer, principalmente com os homens

Como está a situação em Moçambique em termos de integração das políticas de gênero nos diferentes sectores?

A interligação entre todos os sectores está boa, continua estável, mas com alguns problemas. Nós ainda estamos a usar a estratégia de 2005, não houve mudança e estamos a fazer um estudo para uma nova abordagem em 2010.
A estratégia que estamos a usar abrange todos os sectores, tem planos de acção, e o plano tem uma boa base de actividade. Todas as actividades, em termos de planificação, têm sido feitas com base na equidade de gênero.

Qual é a estratégia para o sector agrário?

Estabelece as normas e as directrizes de como o Ministério e as direcções devem caminhar em termos de actividade, e vem acompanhada dum plano de acção. O plano é usado por cada instituição para dirigir as actividades e o grupo alvo.

E a componente gênero aparece? E como?

Aparece. Ela aparece a explicar todas as actividades, incluindo as definições e os objectivos da integração do gênero na distribuição das actividades. Aparece a explicar o funcionamento da estratégia em todo o Ministério. A estratégia é para cinco anos.

Disse que ainda há problemas, quais são?

Esperemos que algo mude com a nova estratégia para 2010.
Os problemas existem na exequibilidade. A estratégia está feita, as directrizes estão feitas, os indicadores estão lá, mas não chegam, na prática, a ser exeqüíveis. Poucas direcções estão a fazer o trabalho prático, usando a estratégia, junto com o plano de acção. Nós queremos tentar institucionalizar o Departamento de gênero, colocando-o no topo. Vamos tentar colocar no sector de planificação do Ministério da Agricultura, porque é de lá que vem o bolo.

No terreno como é que as coisas se passam? Água e terra são acessíveis aos homens e mulheres?

Eu trabalho com água. No terreno, algumas associações já estão formadas segundo a equidade de gênero. E, nessas associações, o que eu faço é ver qual é a origem da água e se há água para todo o ano. Para construir um sistema de rega, não dá para ter água por dois, três meses, senão acaba por causa do sistema em si. É preciso saber a quantidade de água na comunidade, a fonte, se precisam esperar a chuva. Depois disso, faço o projecto, e submeto à direcção, dizendo que na zona tal existem todas as condições para construir um sistema de rega. Muitas mulheres já começaram a aderir também.
Nos casos em que não há equidade, como numa associação em que havia 17 homens, eu tive que dar uma pequena formação de dois dias, e reformular o grupo. Depois de reorganizarem a associação eu posso dar as condições para criar o sistema de rega.

Porque é que em algumas associações as mulheres não aderiam?

Não participavam porque achavam que tomar conta de um sistema de rega tinha muitos custos, por causa da moto-bomba e porque é preciso meter combustível. Elas achavam que não eram capazes de gerir os fundos e trabalhar com a moto-bomba.

Mas elas também trabalham na agricultura e com os sistemas de rega como os homens? Só não estão representadas na associação?

Agora não é assim, as coisas mudaram. Desde 2005 para cá, há associações só de mulheres.
A primeira-dama parabenizou até uma associação em Tsangano. Ela ficou muito feliz com o trabalho que uma senhora fez, uma senhora que teve a iniciativa, convidou outras mulheres e procurou uma instituição de acção social para se informar de como começar uma associação. Começou assim com seis pessoas e agora tem uma grande associação, e a primeira-dama por ter gostado do trabalho dela ofereceu uma carrinha para escoar os produtos. É uma associação que está a funcionar muito bem e é só de mulheres.
O que penso que está a faltar é o seguinte: Eu já fiz muito trabalho de pesquisa em muitas províncias, e detectei sítios em que é possível existir uma agricultura irrigada e em que isso não acontece por causa dos chefes máximos. Parece que não estão muito dentro do que é a equidade de gênero e, às vezes, parece que eu é que estou a impor ao meu chefe e que ele tem que aceitar aquilo que eu quero.
As coisas não deviam ser assim. Quando faço uma actividade planificada, tendo em atenção a equidade de gênero, eu estou a cumprir algo que vem de cima. Mas, muitas vezes, quando submeto o projecto, já não passa, porque acham que não é importante beneficiar uma área de rega para mulheres.

É preciso mudar a mentalidade política, é um problema político?

O que noto, na prática, é isso. A expectativa que tenho com este atelier é que as directrizes para Moçambique sejam muito claras, como uma imposição. Para haver projecto é preciso as associações estarem organizadas e terem atenção à equidade de gênero.
Gostaria que houvesse essa recomendação desde o topo, para que eu, enquanto técnica, possa chegar ao terreno, fazer a pesquisa e dizer: a zona x tem condições de irrigação, vamos montar um sistema, são tantos homens e tantas mulheres, é preciso este dinheiro e o meu director aceitar isso, como sendo a regra.



Então convencer os agricultores no terreno não é a parte mais complicada? Eles percebem a mensagem?

Eles percebem, principalmente as senhoras. Na minha divisão de trabalho prático, eu primeiro convido os homens e digo qual é o meu objectivo, o que é o gênero, tento mudar a mentalidade, pergunto se não queriam ver a mulher instruída, a ir ao campo, produzir, ser ela a fazer a comercialização, e fazer a distribuição do valor que ela tem e comprar o que precisa comprar, sem precisar de pedir ao homem.

Elas são discriminadas em todos esses processos?

Claro. O trabalho que estamos a fazer é tentar fazer ver ao homem e à própria mulher que é possível, que ela também tem direito. Os projectos de sistema de rega já foram chumbados porque se achou que eram valores muito elevados para as mulheres gerirem. Alguns chefes pensam assim.
Eu, na prática, chego à conclusão, que elas, quando têm as explicações todas sobre o sistema de rega, acabam por se dar muito bem sozinhas.
As coisas estão a mudar, mas os problemas costumeiros são muito difíceis. Antes a mulher tinha tarefas muito específicas: era dona de casa e da machamba, cuidava dos filhos, fazia a comida. O homem podia sair da aldeia, procurar um emprego fora, e mesmo os produtos que a mulher cultivava e vendia ele é que tomava posse do dinheiro e fazia a divisão. Mas com a sensibilização que os nossos extensionistas têm feito, o homem já começa a aceitar que a mulher venda os produtos e que ela mesma decida o que comprar e como gastar.

E qual é o maior desafio, neste momento?

É mudar a mentalidade dos homens. A primeira conversa de sensibilização que faço é com os homens, porque é o homem que impõe, e que sempre impôs. Tenho que lhes expor os objectivos, fazê-los ver o significa que uma filha, uma menina aos 12 anos já não possa ir à escola, tenha que casar e tomar conta de casa. Fazer ver que a filha e os rapazes da mesma idade devem ir à escola, que ela deve ter um ensino superior, a economia dela, ser independente. Vemos nas comunidades rurais que os mais velhos começam a aceitar isso de outra forma, começam a ficar mais espertos e acho que é uma questão de sensibilização mesmo. Eles sempre viveram naquele mundo e para sair daquele mundo precisam de uma explicação e de uma realidade. Depois de verem uma realidade acabam aceitando.

Eles acreditam que é possível?

Agora as meninas já vão à escola, e depois para o ensino superior. A mudança de mentalidade está a acontecer. Mas ainda é preciso muito trabalho de sensibilização.

Já se nota uma maior presença da mulher no ensino, no poder?

Noto muito nas escolas. Nas escolas do ensino superior, a maioria são mulheres.
E nos serviços muitos postos começam a ser ocupados por mulheres. Isto já é um passo positivo, no pensamento da própria mulher e do próprio homem. A mulher pode estar num posto de tomada de decisão e o marido pode ser apenas um técnico, isso antes não era possível. Elas assumem a sua chefia e fazem o trabalho normalmente, e conciliam com o trabalho em casa.