15.8.09

Angola: “Vou encarar a questão da estatística de género com muita seriedade”

Entrevista com Carlos Pedro, Departamento de Estatística Económico-Financeira do Instituto Nacional de Estatística de Angola



Em Angola, a equidade de género é já um compromisso do Governo, mas nos campos agrícolas e nas comunidades rurais as mulheres continuam a ter menos direitos do que os homens. Tradicionalmente, o acesso da mulher à terra e aos recursos hídricos depende da relação que mantém com o marido, os irmãos, os tios ou com o pai. A nova lei de terras tem ajudado a alterar estas normas costumeiras, embora sejam necessárias mais campanhas de informação para sensibilizar as mulheres e os homens.
No Instituto Nacional de Estatística, a vontade é de acompanhar os novos ventos de mudança. Ainda não há dados desagregados por sexo, e, as estatísticas carecem de indicadores de género. Carlos Pedro, do Departamento de Estatística Económico-Financeira, participante do atelier da Praia, garante, no entanto, que, a partir de agora, “vai encarar a questão da estatística de género com muita seriedade”.


O INE de Angola trabalha com indicadores de género e dados desagregados por sexo?

Em termos de dados desagregados, ainda não temos nada. Mas, em termos gerais, podemos dizer que Angola é um dos países em que se reflecte esse indicador de género. Já temos muitas senhoras na direcção. E, em concreto, no INE temos uma directora nacional (Maria Ferreira Oliveira) e a ministra (do Planeamento, Ana Dias Lourenço) e mesmo, em termos de departamento, também pesa mais para o lado da mulher.

E no sector da Agricultura?

Temos programas que prestam algumas informações. Em toda a administração e em todo o executivo, a questão de género é um compromisso do Governo.

Em Angola, há mulheres que ainda não têm acesso à terra, por exemplo, em caso de herança. A discriminação continua?

Sim, sobretudo nas terras comunitárias. Ali ainda persiste aquele pressuposto do direito costumeiro, e até uma certa medida as mulheres são mesmo discriminadas.
A posse dos bens é associada aos homens. Eles herdam as propriedades, é a herança dos pais. E as senhoras são vistas no sentido de que, a qualquer altura, vão-se juntar ao marido. A transferência de bens e a posse são mais para o homem. Mas, nesta altura, com a nova Lei de Terras, creio que o quadro está a ser diferente. A componente género está patente e, se calhar, o que está a faltar é uma política de difusão de informação e de capacitação das senhoras. Algo que efectivamente as ajude a saber o que devem fazer e a que é que têm direito. Estes problemas acontecem mais do Sul de Angola, onde há mais essa discriminação, e aí é preciso criar programas de capacitação.
O INE trabalha com estatísticas e não com gênero, mas esta matéria interessa-me bastante e por isso estou nesta equipa. Aprendi agora uma lição: devo encarar a questão da estatística de género com muita seriedade.

Na sua apresentação, focou que Angola ainda tem muito a fazer em termos de estatísticas de género.

Focamos a debilidade do género em termos de dados estatísticos. Estamos frágeis, de facto. Não se deu, até há bem pouco tempo, importância à desagregação dos dados por sexo - temos a informação em termos de macro, mas não vamos ao pormenor. Eu salientei até salientei que estávamos bem, mas depois vi que a intenção é que a informação chegue ao pormenor.


Quais são os vossos desafios daqui para a frente?

Aprendemos uma lição neste atelier uma lição. E vamos tentar promover, incentivar e garantir o compromisso que estamos aqui a assumir. E, na próxima oportunidade, trazer alguma informação já a reflectir a dimensão do género.

Como tem estado a correr o trabalho da task-force?

Eu vou começar agora a fazer parte da task-force. Estamos mais elucidados sobre os nossos objectivos. Temos muitas actividades, mas ainda está numa situação embrionária. A maioria das actividades decorre mais na parte sul, no Huambo e Huíla,mas Angola não é só isto: tem outras províncias e vamos trabalhar para integrar o país todo e ter cada um a participar de forma positiva no projecto.

O que achou do atelier?

A lição mais valiosa que levo é que devo ver o género não no sentido de sexo mas na perspectiva de integração. Às vezes pensamos que, quando estamos a tratar de género, se trata de não deixar a nossa mulher sozinha lá na cozinha dos fundos; se trata de irmos lá ajudar nas tarefas. Mas o género não é apenas isso.
Penso que encontros deste tipo são fundamentais para podermos comparar as experiências de todos e o que estamos a fazer. É uma forma de cooperarmos melhor e de ir ao encontro das necessidades de todos.

Que mensagem pensa levar para o próximo encontro?

Está próximo, o tempo nunca pára! Pelo menos, cumprir o compromisso que assumimos aqui, em algumas matérias, ou, pelo menos, em mais de 50 por cento. Vai ser um pouco difícil, mas vamos tentar, por isso é que estamos aqui.

11.8.09

Lei de Terras em Moçambique: "Implementação da lei é o maior desafio”

Entrevista com André Calengo, Consultor jurídico independente da FAO e de outras instituições em Moçambique
Destaques
  • Lei de Terras, de 1997, garante acesso igualitário à terra e tem sido muito elogiada.
  • As inovações jurídicas da lei têm colocado dificuldades na sua implementação e interpretação.
  • Os juristas estão a tentar que se apliquem medidas mais práticas de sensibilização, junto da sociedade civil, por exemplo.
A equidade de gênero é contemplada na legislação de Moçambique?
Em termos legislativos, avançou-se muito, mas também ao nível de políticas estratégicas e do ponto de vista institucional. Para além de um Ministério que se ocupa da mulher também temos, em cada Ministério, unidades de gênero, pontos focais, uma série de iniciativas e de medidas que foram tomadas para ir ao encontro dos objectivos do Governo e também para responder a essa preocupação internacional da equidade de gênero.

A Constituição também fala da equidade no acesso à terra e aos recursos hídricos?

Temos o princípio da igualdade e da paridade no acesso a direitos, e isso é aplicável à terra. O que se diz em relação à terra é que todo o povo moçambicano tem direito, incluindo a mulher. Diz ainda que se respeita os direitos adquiridos pela ocupação e herança, já também para ir ao encontro das preocupações que decorrem da história e das normas e práticas costumeiras, que tendem a limitar o acesso da mulher à terra.

Dê-me alguns exemplos dessas normas costumeiras.

Nas propriedades, o filho varão representa o agregado familiar e isto, muitas vezes, limita os direitos da mulher. Não é uma limitação específica, mas uma limitação no contexto geral e também aplicável à terra.

É uma questão cultural.

Sim.

E o que acontece em caso de herança?

No caso do falecimento do marido, a mulher tem que voltar à sua terra de origem.

É uma tradição, a lei não o exige?

Não, mas temos que ter em conta que esta é a realidade, a realidade histórica e cultural, é a realidade prevalecente. Se a mulher tiver que voltar à terra de origem não quer dizer que ela fique sem terra, pode ser que lá, na sua terra, tenha onde trabalhar. Mas se já saiu há muito tempo de lá, já se acostumou com a vivência do local onde esteve, já se acostumou, por exemplo, com a próprio sistema de produção. E tem que voltar a enfrentar uma nova situação, dez ou 20 anos depois.Pode encontrar a terra em condições diferentes das que tinha deixado.

Fez alguma recomendação no seu trabalho para tentar mudar esses costumes?

Nós temos o princípio de harmonização na aplicação das normas costumeiras com as normas de direito positivo, que decorrem do pluralismo jurídico. São reconhecidas essas normas. O que acontece é que diz que é reconhecida, desde que não contrarie os valores fundamentais da Constituição, que vão desde a igualdade, etc.
Uma das recomendações vai dar continuidade a programas de educação e de sensibilização a nível comunitário, local, sobre a necessidade da promoção dos direitos da mulher. É uma das recomendações para a harmonização das normas e práticas costumeiras.
As grandes recomendações são aquelas que estamos a tentar concretizar do ponto de vista prático, medidas mais práticas junto da sociedade civil, por exemplo.
A Lei de Terras já tem mais de dez anos, foi aprovada em 1997, e decorreu de um esforço nacional, mas hoje em dia é aplaudida como uma das melhores produções no processo de acesso à terra e de rompimento com a desigualdade que prevaleceu com o colonialismo e com a guerra.


Hoje em que pé estão? A Lei rompeu com o status-quo e agora?

Os nossos desafios têm a ver com a implementação, mesmo a interpretação da Lei de Terras enfrenta desafios porque trouxe muitas inovações do ponto de vista jurídico.

Por exemplo?

Por exemplo, esta questão do pluralismo jurídico. De que as normas costumeiras governam o acesso e a posse da terra tal como o fazem as normas que decorrem do direito positivo, as normas escritas. Isto implica, por exemplo, que em matéria de prova é válida a prova testemunhal tal como a prova escrita, o documento. Num caso de um conflito de terras, alguém pode trazer uma testemunha, membros da sua comunidade e afirmar que ele é detentor daquele direito, daquela parcela. Em condições normais, a prova escrita prevaleceria, mas por mais que alguém traga um título, verdadeiro, forjado ou viciado, a verdade é não é logo visto como tal.
A outra questão é a que a comunidade é vista como um sujeito de direito, um dos sujeitos no contexto jurídico. Estamos habituados a ver os sujeitos jurídicos como a pessoa individual e as pessoas colectivas e agora se vê também a comunidade como uma outra entidade qualificada ao abrigo da lei de terras.
Outro desafio que temos é a delimitação das áreas comunitárias, qual o tamanho, quem representa a comunidade, objectivos da delimitação.

E terrenos que são vendidos para fins turísticos, tem havido expropriação de comunidades?

Temos três formas de acesso à terra: por via das normas e práticas costumeiras, por ocupação de boa-fé em benefício de pessoas singulares (passados dez anos têm o direito com todas as garantias jurídicas), mas também por via de pedido junto do Estado. Esta última é, fundamentalmente, para os investidores do sector privado ou pessoas colectivas. Assim o Estado pode responder com um processo que se inicia com a identificação da área; nesse passo de identificação o requerente deve começar a discutir e a negociar com as comunidades locais e depois disso segue-se o processo formal de consulta comunitária. Os membros da comunidade sentam-se com o requerente, perante o Estado, e discutem se a terra está disponível para a ocupação. Pode estar, pode não estar, pode estar ocupada, mas a comunidade pode ceder em troca de contrapartidas e parcerias, normalmente contrapartidas sociais.
Por exemplo, o requerente quer dez mil hectares e a comunidade vai perder algumas áreas, mas pode beneficiar com a construção de uma escola, ou com o melhoramento da estrada ou da ponte ou um hospital, etc. Podem também pedir benefícios econômicos ou implementar uma actividade econômica conjunta.
Temos uma comunidade que pediu o reconhecimento do seu direito, viu a sua área delimitada, e, através de fundos da cooperação, conseguiu construir um lodge que agora está a ser operado por um privado. Há um contrato com este operador para que explore o lodge e a área contígua, que compreende uma área de campismo, junto de um parque natural e uma área de conservação. Portanto, é uma área de eco-turismo, e são esses exemplos que compensam os esforços que têm sido feitos.

Existem conflitos por causa de terra ou água?

Não temos a situação de sem-terra. Isso não significa que não haja potencial para conflito. À medida que há o crescimento da população e da actividade econômica já se nota que há algumas áreas de pressão: áreas junto de zonas costeiras, terras junto das estradas, nas cidades.
Aí começa a haver conflitos sérios motivados pela especulação.
As coisas funcionam assim: As pessoas pedem as terras e são lhes concedidas pelo Estado, mas há um mecanismo probatório que faz com que a pessoa tenha que provar que vai utilizar a terra efectivamente, durante cinco anos, no caso dos nacionais, e dois anos, no caso dos estrangeiros.
Passado este período, essa pessoa recebe uma autorização definitiva e, normalmente, o direito pode ser concedido por 50 anos, e renovável por mais 50. O que acontece é que muitas pessoas aproveitam para, durante o período probatório, e, em cima dos títulos, passar o direito a outro interessado através de contrapartidas, inclusive financeiras. Trata-se de vender efectivamente a terra, pese isto esteja vedado pela Constituição - a terra não se vende, não se hipoteca e não se aliena ou penhora. Mas as pessoas arranjam formas de contornar isto e de fazerem especulação, o que me nos permite concluir que há, em Moçambique, um mercado informal de terras.