8.4.08

“Angola deve dar autonomia às comunidades na resolução de problemas do domínio da terra”

Henrique Alves Primo, do Ministério de Agricultura de Angola, faz ao blog CPLP-FAO um retrato da situação fundiária do seu país, que esteve também representado no Atelier CPLP-FAO, que se realizou em Setembro de 2007, em Cabo Verde. Para este responsável, Angola precisa descentralizar a sua abordagem aos problemas da terra. Uma delimitação mais cuidada das terras das comunidades e um conhecimento mais próximo da realidade em que vivem são algumas das soluções defendidas por Alves Primo para resolver alguns dos conflitos fundiários no seu país. Angola, diz ainda, tem enormes potencialidades no sector fundiário e espera contar com o apoio dos restantes países lusófonos para desenvolver um sistema administrativo mais consonante com a sua realidade e para treinar os seus técnicos.





Pode fazer-me um retrato geral da situação fundiária em Angola?
Primeiro, tivemos uma guerra muito grande, que terminou em 2002. Nessa altura, é que começamos a aflorar alguns problemas de terras.

Fomos um país colonizado pelos portugueses durante bastante tempo e a maior parte das propriedades que eram dos nacionais estavam sob o domínio dos portugueses. Em 1975, com a Independência, os portugueses foram embora e era preciso encontrar uma nova forma de adjudicar essas propriedades às pessoas. Porém, não tínhamos nenhuma lei à altura após a Independência. Só depois criamos uma lei, que, no entanto, não cobria todos os domínios, como as minas, o urbanismo, etc., e devido a isso começou-se a criar uma série de problemas em Angola que aumentaram, cada vez mais, à medida que o país ia alcançando a paz. Temos grandes problemas fundiários.

Quais são esses os problemas, pelo menos, os mais graves?
Os conflitos maiores existem na zona Sul, entre criadores de gado, entre empresários e os pequenos agricultores. Existem, no geral, problemas de delimitação da terra das próprias comunidades, problemas na legislação e ainda nos serviços da administração fundiária. Cada sector que geria a terra tinha uma legislação própria, independente: a agricultura tinha uma lei, o urbanismo tinha outra e isso criava problemas.
O sistema da administração era também muito diluído, não havia uniformidade, o que permitia que várias pessoas pudessem conceder terras: isso também criava conflitos.
Não tínhamos ainda cadastro porque estava entregue à Defesa. Tudo isso eram focos de problemas, que estamos agora a tentar resolver, organizando, criando registos, fazendo a cartografia das regiões. Mas todos esses aspectos continuam, actualmente, a ser problemas.

E, em relação à lei, alguma coisa mudou, entretanto?
Temos uma legislação (lei de terras) de 1992, que é essa tal lei em que cada um dos Ministérios tinha as suas regras. Depois disso fizemos uma discussão e agora temos uma nova lei, datada de 2004, e que foi regulamentada agora há pouco tempo.
Nessa lei nova, já se permite que toda a questão fundiária fique sob a alçada de um só organismo, que é o Ministério do Urbanismo e Ambiente. No entanto, o facto de a questão da terra ficar só sob a tutela do MUA às vezes cria problemas, como é o caso da terra usual, que era gerida pelo Ministério da Agricultura. Este Ministério tinha já uma certa implantação e sensibilidade para essa matéria e agora isso não está a ser retomado pelo MUA. Nesta nova lei, o MUA tem que dar apenas um parecer vinculativo. Mas a concessão de terras, a elaboração do cadastro, depende já de outros ministérios.

E o Ministério da Agricultura não tem qualquer papel?
Não. O sistema é transversal em relação às leis que temos, mas não em relação à aplicação da lei que temos em Angola.

Existem muitos conflitos de terrenos em Angola? Por exemplo, casos de expropriação pelo Estado?

Existe mas não em tão grande escala como, por exemplo, em Cabo Verde que tem uma forte pressão demográfica. Nós não temos ainda esse problema. Conflitos de expropriação acontecem, por vezes, mas mais nas zonas urbanas ou periurbanas. Na zona rural, também há de vez em quando mas os conflitos acabam por ser resolvidos porque não há grande investimento na zona rural.

A mulher angolana está numa posição de igualdade no acesso à propriedade da terra?

Perante a lei tem acesso, mas na prática não tem. A lei não discrimina o homem e a mulher mas no sistema tradicional, em Angola, a mulher só tem direito à terra através do casamento. A terra é do marido e enquanto ela for mulher dele, ele dá-lhe um pedaço de terra para cultivar e para ela trabalhar. Nalgumas regiões do país, o trabalho que ela faz na terra serve-lhe de rendimento para comprar as suas próprias coisas, cosméticos, roupas, panos, etc.

Os homens também fazem o trabalho rural?
Há uma divisão do trabalho rural. O trabalho pesado e a lavoura são feitos pelo homem. O trabalho mais do dia-a-dia é assegurado pela mulher: a sementeira, a colheita, os elementos culturais. No geral, dois terços do trabalho no campo são feitos pela mulher mas o trabalho pesado é o homem que faz.

Mas, embora assim seja, há pouco disse que a mulher só acede à terra pelo casamento.

No sistema tradicional sim, as heranças nunca são dadas às mulheres, mas aos homens ou aos primos. Se a mulher enviuvar, o terreno volta para a família do marido e, em alguns sistemas, ela terá que voltar a casar com algum membro da família do seu marido. Normalmente, um dos irmãos, e assim o património não fica dividido.
Está a aparecer um fenómeno agora mas que ainda não é bem conhecido, em que algumas mulheres, no sistema tradicional, têm terra. Como tivemos uma guerra muito grande, muitas mulheres ficaram sem maridos e tiveram que assumir o papel de chefes de família. Assim, nalgumas zonas onde os efeitos da guerra são mais visíveis permite-se que as mulheres tenham terras. Dá-se uma certa posse, alguma permissão, mas não é ainda uma garantia segura de que ela é dona daquela terra.

Perante este retrato que faz, em que se percebe que há ainda alguns conflitos e dificuldades em aplicar a lei, que soluções afigura para melhorar o sistema de administração fundiária no seu país?

Já temos uma lei. Falta-nos uma equipa com formação, tanto no governo como na sociedade civil, e que tenha capacidade para, de facto, discutir os problemas da terra. Ainda existe muita centralização e precisamos descentralizar mais a abordagem aos problemas da terra. Temos muitas questões familiares que envolvem o domínio da terra e precisamos dar maior autonomia às comunidades. É necessário caracterizar as regiões, o seu desenvolvimento, as pessoas que lá vivem. Acho que essa caracterização é uma via que devíamos seguir.

Por outro lado, devíamos criar instrumentos para fiscalizar a implementação da própria lei. Existem muitas situações conflituosas que a própria lei não protege, nem apadrinha, mas as pessoas que não a conhecem acabam por ser vítimas da influência e da pressão das pessoas que conhecem a lei e a manipulam. Essa falta de informação e de estruturas de arbitragem, embora a lei preveja que os problemas possam ser resolvido a nível local, põe também muitos problemas.

Outra grande questão que surge, em Angola e noutros países, é definir o que é propriedade das comunidades e das pessoas. Isto passa por um processo de delimitação da terra da comunidade, porque afinal a terra das comunidades é reconhecida na lei formal mas não se sabe qual a quantidade de terra que a comunidade tem. A comunidade não tem um estatuto jurídico-legal que lhe permita dizer “esta área é nossa e nós precisamos usá-la ou negociá-la para o nosso desenvolvimento”.

Em Angola, há outros factores que podem influenciar a luta pela posse da terra: os diamantes, o petróleo. Como lidam com essa questão?
A lei refere uma coisa que é considerada polémica. Diz que os recursos naturais são propriedade do Estado, e quando fala nos recursos naturais, está apenas a incluir os recursos não renováveis, como os diamantes e os minerais. Sobretudo nas áreas em que há diamantes, porque o petróleo é mais explorado no mar, há alguns conflitos porque não estão definidas quais são as zonas de exploração diamantífera e quais as zonas de exploração agrícola.

Outro problema em Angola são as minas anti-pessoais, que ainda existem em muitas áreas do território.
Sim. Estamos com algum avanço na desminagem, mas isso é uma limitação. Há lugares onde um dos problemas fundiários é a existência de minas, que limita bastante a circulação das pessoas e as áreas trabalhadas. Infelizmente, as minas existem em áreas produtivas e isso tem dificultado muito a vida das comunidades.

Angola esteve no Atelier da Praia tal como os restantes países da CPLP. Do que ouviu, daquilo que foi partilhado por todos, qual a experiência que poderia ser mais interessante para Angola aproveitar?

Nós temos muitos conflitos e podemos aproveitar a experiência da reforma agrária do Brasil, que passa pela formação técnica em cada área, desde a cartografia à delimitação das terras das comunidades.

Julgo que neste espaço da CPLP temos a vantagem de falarmos a mesma língua, o que permite que os nossos técnicos se possam deslocar mais ou menos à vontade, caso nos unamos para organizar capacitações.

Pode-se também aproveitar o facto de termos passado por experiências, pelo menos de colonização, comuns. Embora tenhamos diferenças culturais, económicas, o colonizador impôs, de certa forma, o mesmo sistema de administração fundiária. Temos aí uma base para discutir e encontrar formas de melhorar porque este sistema não se consegue adaptar à realidade actual de cada um de nós. Em Angola, por exemplo, a função social da terra é muito mais importante do que o seu valor económico e o sistema implantado tinha uma visão da propriedade perfeita.

Nós não temos, em Angola, uma propriedade singular e individual, mas temos uma propriedade colectiva e temos que gerir isso no sistema de ordenamento. É a realidade que temos e é dela que devemos partir para fazer alguma coisa. Não podemos impor um sistema que depois não se adapta às nossas realidades e um dos grandes entraves ao desenvolvimento agrário do nosso país começa exactamente pelo sistema de propriedade da terra.

Se queremos fazer um programa de desenvolvimento, por exemplo, as pessoas perguntam logo: quem é o dono da terra, quem tem os títulos? Mas para a grande maioria das pessoas que, de facto, precisa de ajuda e apoio não se trabalha nesse sistema legalizado.

Portugal, enquanto ex-país colonizador, tem mais responsabilidade do que os outros países neste debate, ou essa é uma questão que já não faz sentido discutir?
Portugal não tem que ser diferente. Portugal, em relação a nós, é uma potência e tem potencialidades para nos oferecer. Não vamos pedir responsabilidades de Portugal, mas uma maior cooperação já que tem maior capacidade para nos ajudar e tem a vantagem de conhecer as nossas realidades.

Há interesse efectivo de Angola neste projecto comum entre os países da CPLP, com o apoio da FAO?
Sim. Um factor sintomático é que o nosso Ministério do Urbanismo está a pensar pagar mais duas pessoas para se dedicarem apenas este projecto. Isto mostra desde já o interesse que têm.

O Governo sabe que o domínio fundiário vai ser uma matéria cada vez mais forte em Angola. Temos todas potencialidades para desenvolver, em todos os domínios. Por outro lado, sabem que temos uma fraqueza institucional grande, e falta de técnicos e tecnologia para encarar muitos dos nossos problemas. Por tudo isso, este debate em Angola terá muito acolhimento.

7.4.08

Brasil: Extensionistas são capacitados na perspectiva territorial

Terminou, na última sexta-feira (29 de Março), o segundo Curso para Capacitação de Agentes de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) numa Perspectiva Territorial, realizado nos estados do Rio Grande do Norte e Paraná, no Brasil. A iniciativa é uma acção conjunta do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

O curso foi voltado para agentes de Ater, sindicalistas, representantes das prefeituras municipais e de organizações não-governamentais.

O objetivo da capacitação foi contribuir para o melhor entendimento a respeito do tema "desenvolvimento territorial sustentável", inserido no conceito de territórios e também adaptado à realidade dos territórios, tendo como base a metodologia de Desenvolvimento Territorial Participativo e Negociada (DTPN), aplicada em vários países onde a FAO tem acordos de cooperação.