18.6.10

Armanda Gomes: “Se a mulher não está no lugar de decisão continua pobre”

Entrevista com Armanda Gomes, presidente da Associação de Desenvolvimento Integrado de Rui Vaz (interior de Santiago)

Destaques:
  • Presidente da ADIRV defende quotas para mulheres nos órgãos comunitários de decisão
  • Associações devem procurar auto-financiamento e resistir à subsídio-dependência
Neste atelier (Maio de 2010, na cidade da Praia) temos feito vários exercícios que demonstram como se geram as desigualdades de gênero. Achou estes exercícios interessantes?
Há um que me marcou, o do caso da mulher com posse de terra e distribuição de água. Se reparou bem nos exercícios mostra-se que as famílias cabo-verdianas são chefiadas por mulheres chefes de família, mas na hora em que se planifica com aquele mapa de estratégia há algumas áreas em que a mulher fica longe da decisão.

Isso acontece na vossa região?
Por acaso, não. Mas, em quase toda a parte, é assim que a mulher está. Temos que destacar que nas terras de sequeiro são apenas as mulheres que fazem a agricultura, enquanto no regadio, que é onde dá dinheiro, são os homens que produzem.

E porque é que é assim?
Acredito que é por causa da cultura, mas também acredito que temos que ser mais dinâmicas. Quando falo em dinâmica, quero dizer ter quotas. Quem é que dá quotas à mulher?

Porque é que as mulheres aceitam isso, porque não são mais dinâmicas?
Eu acredito que muitas coisas já mudaram, temos que ser realistas. Mas, para mim, tem que mudar muito mais. As mulheres devem ocupar mais lugares de destaque, devem ter mais estudos e mais posição. Temos grandes mulheres, grandes exemplos, e penso que as mais velhas devem incentivar e apoiar as mulheres jovens porque muitas têm capacidade de chegar a algum lugar. O meu conselho é que vão para lugares chave, porque todas as mulheres saem a ganhar se houver mulheres em lugares de decisão. Se não estamos em lugares de decisão, onde a nossa voz é ouvida, continuamos pobres. É preciso estar no centro de decisão, mas também saber ouvir e dar opinião.
Quando estamos numa sala em reunião, encontramos muitos tipos de mulheres naquelas camadas mais pobres. Muitas têm dificuldade de falar até mesmo sobre aquilo que sentem. Assim não vamos a lugar nenhum. Temos que expressar o que sentimos para que entendam onde queremos chegar.

Em Rui Vaz, as mulheres não têm problemas em se expressar?
Não há tanta desigualdade, e acho que é porque as mulheres estão lá a representar a associação. São cem mulheres e 71 homens na associação, nós estamos na maioria. Foi necessária muita formação e um conjunto de investimentos para chegarmos até este ponto. Por exemplo, a Armanda de ontem não é a Armanda de hoje. A formação é para se pôr na prática, mas primeiro ajuda-nos a deixar de ser tímidas, a perder o medo. Começamos a afirmar-nos e a defender a comunidade. A defendê-la da maneira que se sente que é preciso defender.
Aqui no atelier reparei, através dos exercícios, que a mulher é que carrega mais a água e que usa mais a água, mas no mapa que fizemos, ficou a notar-se que o homem é que toma a decisão sobre a água. Penso que devemos equilibrar: se somos nós que temos mais necessidade de água, somos nós que temos que decidir onde o furo fica e como é distribuído.

Têm algum problema com distribuição de água ou posse de terra em Rui Vaz? Faça-me um retrato da zona, em termos de recursos hídricos e fundiários.Não temos problemas com água desde que abrimos um furo. Quanto à terra é quase tudo de privados e não há propriedade de regadio. Normalmente, o privado faz o que quer da sua terra e tem rendeiros para trabalhar, mas penso que estamos a demorar a mudar. É preciso rentabilizar os rendeiros, em vez de semear milho e feijão deviam passar para a horticultura, que rende mais. Mas é bom que fique claro que temos mulheres que são chefes de família e não têm terra.
Outra parte importante de Rui Vaz é o perímetro florestal de Curralinho, que é uma área reservada, é um patrimônio. Ali está definido o que é posse de terra e água e o que podemos fazer ou não.

O perímetro é usado pela comunidade?
Não, é conservado como floresta. Antes havia a tentação de o usar para a agricultura, mas se o fizéssemos não teríamos floresta. Temos que ser claros, a comunidade tem muito a ganhar com o Curralinho. Por exemplo, vendemos lenha retirada de lá e o fundo reverte para a comunidade de Rui Vaz e é uma atracção para os turistas da montanha. Para mim, tudo no deve ser preservado.

A comunidade apoia na preservação da floresta, por exemplo com trilhas e guias?
Já formamos alguns guias. Fizemos uma ampliação do perímetro, para incluir a categoria de parque florestal no Curralinho. Construímos a fábrica de queijo para as mulheres chefes de família, mas agricultura não. Temos um plano para trabalhar no perímetro, ninguém tira um pau sem pedir à associação.

Isso foi feito em parceria com o Governo?
Fizemos os planos com o MADRRM. E agora vamos desenhar um plano especifico para aquela área, por exemplo, para usar o eucalipto para o artesanato, um mapa das plantas endêmicas, ervas, animais.

É muito difícil, hoje em dia, para uma associação local fazer projectos e obter financiamentos?Toda a associação que trabalha para o desenvolvimento tem sempre alguma dificuldade. Antes os projectos eram dados a fundo perdido e agora não. Agora sou eu, como associação de base, que faço o projecto. Mas isto coloca-nos muitos entraves. Se se tratar de um projecto com um orçamento de dez mil contos para cima, temos que ter um técnico especializado na matéria, e isso começa a complicar a vida da associação. Se alguém de fora nos chama por causa do projecto e fala francês ou inglês complica a vida ao presidente da associação comunitária. Se é preciso alguém que fale inglês para escrever um projecto tem que se pagar um custo alto.
Para concorrer a projectos a nível internacional, a exigência é grande. Na hora que começamos a sair de base é preciso uma estrutura e já há outra responsabilidade.

A ADIRV tem dois projectos internacionais, certo?
Sim, da União Europeia. Os dois financiamentos são para a fábrica de queijo, que já está concluída. É como um bebé que está a nascer. Estamos a concorrer ao segundo projecto, de 30 mil contos, para pôr a fabrica a funcionar, e fazer o bébe a caminhar. Isto faz-nos também pensar na responsabilidade da associação, na sua estrutura, e em que tipo de associação queremos nos tornar. Não vejo a associação depender sempre de alguém para nos dar e dar. Vejo-a a criar um fundo para que numa hora em que seja preciso não tenhamos que depender dos outros, nem de nenhum apoio.

Fogo: Água e escoamento dos produtos são grandes desafios para sector agro-pecuário

Entrevista com Manuel Gomes, presidente da Associação dos Produtores Agro-pecuários do Fogo

Destaques:
  • Falta de água e mau escoamento dos produtos são os principais entraves ao desenvolvimento da agricultura no Fogo
  • Mulheres são participantes activas na associação de agro-criadores, embora poucas tenham posse da terra
  • Pequena indústria de transformação agro-pecuária leva marca do Fogo a mercados internacionais
Na Associação dos Produtores Agro-pecuários do Fogo tem-se em conta a abordagem gênero na elaboração de projectos ou nas actividades?
Por acaso, temos algumas mulheres que são donas de parcelas de terrenos irrigados, e são membros da associação. Não são maioritárias na associação, mas são em bom número, e participam, exigem e reclamam o que está mal, sobretudo a distribuição de água. Aliás, não sei se está a perceber que as mulheres já estão a tomar a dianteira nesse processo.
Estão?
Estão mais bem informadas, estão mobilizadas, até as organizações não governamentais e governamentais estão a dar a prioridade nos projectos às mulheres, sobretudos às mulheres mães-chefes de família.
Acha que a situação se vai inverter com um predomínio das mulheres nos centros de decisão no meio rural?
As mulheres têm jeito e estão bem preparadas para participar nesse processo de desenvolvimento de Cabo Verde.
No Fogo, como vê a questão da equidade de gênero no acesso à terra e à água? Há desigualdade?
Os homens racham as pedras, labutam com a terra, e normalmente as mulheres ocupam-se mais do trabalho de apoio ao homem. Em Santiago sim, parece-me que as mulheres fazem tudo no campo. No Fogo, é diferente. Não há muitas mulheres a participar nas actividades ligadas à terra, e pela mesma razão muito poucas têm a posse directa da terra. Aliás, o Fogo tem uma condição particular em Cabo Verde: as questões fundiárias cingem-se a poucas pessoas, temos grandes proprietários de grandes parcelas.
Porque é que ainda é assim?
Foi o ultimo bastião do colonialismo português. A tradição diz que os filhos-homens herdam as terras para que não se faça o parcelamento para outras pessoas. As mulheres quando casavam, embora tendo direito, não ficavam com a posse. É uma questão cultural, que se justifica pelo não parcelamento dos terrenos. No Fogo, há apenas grandes propriedades.
E graças a essa situação particular, imagino que não haja grandes conflitos por causa das terras?
Não há conflitos em termos de utilização da terra. Eu estava exactamente a defender lá na sala (no atelier de Maio de 2010, na Praia) que há uma relação de amizade entre os donos da terra e os que trabalham a terra, são compadres. Conseguem resolver os seus próprios conflitos sem ter que passar pelas autoridades.
Há uma relação de confiança, e noto até que os rendeiros fazem o que bem querem da terra, tiram o que precisam e levam ao proprietário o que bem entenderem, e o que acharem que devem dar. Os proprietários não exigem.

São Vicente e Sal são mercados preferenciais

Chã é um caso à parte?
Em Chã, tudo é propriedade do Estado, propriedade municipal. Há muita gente que tem posse, por aforamento, e vai passando por herança essa posse, de forma ilegal. Aí prevalece essa situação. Embora custe muito fazer o trabalho agrícola naquela zona por causa da jorra, as terras são férteis. Produz bem.
A ilha do Fogo continua a enfrentar grandes desafios para fazer desabrochar a sua agricultura?
Temos dois grandes problemas para resolver: a água e a distribuição dos produtos agrícolas de regadio. Temos uma empresa inter-municipal, com vocação meramente comercial, a explorar a água. Na nossa associação temos outra filosofia na utilização de água, e temos em conta alguns aspectos sociais. Neste momento, temos alguns pequenos conflitos devido a essas diferentes filosofias, mas penso que tudo vai ser ultrapassado com as novas estruturas de distribuição de água. Já temos furos, e estamos a construir os reservatórios de água, depois as condutas. Vi no jornal que o Governo já assinou o contrato com as empresas que vão fazer as novas estradas no Fogo e que irão aplicar a nova rede de água, a nova tubagem.
Quais os concelhos que têm mais problemas com a água destinada à agricultura?
Santa Catarina e São Filipe, na zona sul, em que há mais extensão de área cultivada. O problema tornou-se maior com a implementação do projecto da vinha de Maria Chaves, sob responsabilidade dos padres Capuchinhos. É um projecto de grande envergadura, que consome grande quantidade de água e que acaba por afectar grandemente a distribuição de água aos outros produtores, sobretudo na área sul.
O outro problema do Fogo, dizia, é a distribuição dos produtos.
Sabe que quando o Fogo produz, produz mesmo. Nem actualmente com a produção baixa, o mercado consegue consumir tudo. Este ano, há uma grande produção de caju e manga, chegamos a comprar manga por cinco escudos. Eu tenho uma empresa de transformação de doces, com um grupo de mulheres, e fizemos um bom stock de doces. Os agricultores têm lucro porque com a fruta é só apanhar e distribuir.
Já com os produtos hortícolas temos mais problemas: o mercado não consome e não há escoamento. Às vezes, não há transporte regular Fogo-Praia ou Fogo-São Vicente, que é o maior centro urbano consumidor. Praia tem concorrência dos produtores de Santiago, embora também consuma. Mas os mercados preferíveis são São Vicente e Sal e para aí não há ligação marítima regular o que dificulta bastante a distribuição dos produtos dos horticultores.
O Millenium Challenge Account pretendia construir um Centro de recolha e tratamento de produtos agrícolas no Fogo, mas com a descida do dólar o projecto ficou adiado. O Governo parece que está a pensar também nisso para o concelho de São Filipe, o que seria uma grande ajuda para os horticultores, já que se teria condições de frio para não deteriorar os produtos, etc.
Nesse sentido, concorda com alguns dirigentes que dizem que a ilha do Fogo, apesar do potencial que tem, continua esquecida e à margem do investimento?
Não diria que é esquecida. A ilha ainda não é devidamente explorada por causa da problemática da água. A própria orografia do Fogo não ajuda e a quota de água explorada localiza-se quase toda junto ao litoral. Para se elevar ao nível, por exemplo, de 600 metros custa muito. Mas tudo leva a crer que a nova rede vá melhorar bastante. Mas é claro que ainda estamos a uma grande distância de se poder explorar toda a potencialidade agro-pecuária do Fogo. Para se chegar a esse ponto, exigem-se investimentos elevadíssimos.
Outro sector importante na ilha é a pecuária.
É outra actividade geradora de rendimento da ilha. Cria-se mais os caprinos, bovinos, também as ovelhas, e, em menor quantidade, os suínos. Temos depois a transformação dos lacticínios. O Fogo ganhou uma visão nesse processo. Neste momento, já temos uma empresa, a SuiFogo, que lançou há dias o queijo de Cutelo Capado, pasteurizado e com uma embalagem fechada a vácuo, de forma a poder resistir algum tempo.
Essa é outra questão que se põe aos produtores: apresentar produtos de qualidade e com garantia de segurança.
A SuiFogo apareceu como parceira da Associação dos Produtores Agro-pecuários para atender às necessidades de distribuição e comercialização. Os produtores não podem produzir e comercializar ao mesmo tempo. A SuiFogo tem um mercado para colocar os produtos, o que estimula a produção. E valoriza os produtos, dando um tratamento, embalando e colocando os rótulos e ocupando-se da comercialização.
Quanto ao controlo de qualidade, o Fogo não tem um laboratório,mas os produtos são inspeccionados por técnicos. Primeiro, temos o problema bicudo da água para resolver, depois a distribuição e, numa terceira oportunidade, teremos que qualificar os produtos do Fogo para terem uma aceitação nacional, e até internacional. O doce, o café e o vinho já têm, aliás, aceitação internacional.
Para si, o que é que contribui, a nível humano, para que a ilha tenha uma tão boa e diversificada produção agrícola?
Creio que é tradicional do Fogo. A gente do Fogo já sabe que não tem outros recursos, outros meios para se desenvolver que não sejam a agricultura, a criação de gado, e o turismo. Não temos fábricas, não temos nada, por isso viramo-nos para a agricultura como nosso modo de viver.

INGRH: Questão de gênero vai ser incluída na recolha de dados estatísticos

Aneth Lopes, técnica do departamento de Planeamento estratégico e intervenção financeira do Instituto Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos, garante, em entrevista, que a abordagem gênero deverá ser incluída na análise estatística de dados sobre a água, em particular no novo projecto Sinágua - Sistema Nacional de Informação sobre Água.


Um dos maiores problemas estruturais de Cabo Verde é o acesso à água. Esse problema atinge particularmente as mulheres, mas ainda assim o INGRH continua a não ter dados desagregados por gênero. Porquê?Ainda não começamos a trabalhar com a questão de gênero porque trabalhamos com os dados brutos. Ou seja, não especificamos o sexo, a desagregação por gênero. Mas temos todos os outros dados brutos com todas as informações necessárias sobre a água. Por exemplo, temos o balanço hídrico, que é a quantidade de furos que há em Cabo Verde, especificado por todas as ilhas, contabilizamos as nascentes, etc. Mas nesses dados, de facto, nunca especificamos homens e mulheres. Não sei porquê.
Eu estive no atelier do ano passado (Junho de 2009) e desde aí concordamos que íamos começar a trabalhar nesse aspecto. Em 2010, vamos implementar dois projectos: um sobre a operacionalização da hidrologia superficial; o outro é o Sinágua-Sistema Nacional de Informação sobre a Água. O primeiro projecto vamos implementar agora, o coordenador já está a começar os trabalhos, e vamos ver se conseguimos incluir a questão de gênero. Já o Sinágua é o projecto mais oportuno para inserir a questão de gênero, mas estamos ainda na recolha para a base de dados.
Mas então não está ainda decidido incluir a questão de gênero nas analises de dados?
Ainda não há nada feito. Fizemos reuniões, estamos em recolha de dados para ver se conseguimos integrar nos projectos. E a verdade é que sem esses dados desagregados não conseguimos fazer projectos que alterem o panorama de desigualdade.
Não há como fugir a esse facto.
É. Essa questão do gênero dentro dos recursos hídricos é muito importante. As mulheres têm capacidade, mas não têm oportunidade. Quando se vê um grupo (associação) de homens e mulheres, se elas querem ser chefes, normalmente eles não deixam. Não sei se é a cultura cabo-verdiana, mas os homens sempre ficam por cima da situação. Mas já estamos a mudar.
Como é que podemos sensibilizar as mulheres para que se envolvam mais nas decisões?
As mulheres estão sempre mais envolvidas na gestão da água. Elas apanham a água, trabalham na cozinha, na lida da casa. Mas quando chega a hora da decisão, os homens têm a primazia. Temos que sensibilizar as mulheres para terem força até porque elas próprias já desistem da responsabilidade. Elas conhecem mais tudo o que tenha a ver com a gestão da água, elas sabem o tempo que se demora a andar dois quilômetros para ir buscar uma lata de água. Mas o INGRH está a melhorar a vida das populações, colocando exactamente água em todas as casas no meio rural, e assim as mulheres terão mais tempo.
Como não têm dados, não sabem realmente se há discriminação no acesso à água? Não sabemos. Todos os anos criamos um programa de investimento com projectos destinados a melhorar as condições de vida das populações que não têm água. Nas zonas rurais ainda há muitas pessoas que não têm água. Este ano fizemos dois projectos, um em São Salvador do Mundo, com ligação domiciliária, perfuração, e reservatório e temos outro em Santa Cruz, aliás assinamos o contrato no mês passado. Cada ano estamos a diminuir as carências de água das populações nas zonas rurais. Na cidade não há problema de abastecimento, mas apenas de qualidade nalgumas zonas.
A falta de qualidade da água é uma das grandes queixas, por exemplo, para quem mora na Praia.
A qualidade não depende só do INGRH. O INGRH faz a recolha das amostras, verifica as nascentes, os furos e os reservatórios, mas dos reservatórios até às casas das pessoas são outras entidades que se devem responsabilizar. Eu posso dizer que não há qualidade de água, até porque em minha casa, às vezes, sai aquela água amarela. Mas os utentes culpam o INGRH e o problema não é nosso. Todo o trajecto que a água faz até chegar às casas já não é obrigação do INGRH. A tubagem é responsabilidade da Electra e das Câmaras Municipais. A Electra é que vende a água, não o INGRH. O INGRH só cobra a taxa de exploração.

Agricultura: “Escoamento de produtos é o maior problema de São Nicolau”

Há poucas semanas no Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos na vila da Ribeira Brava, Lucilena Soares consegue já fazer um retrato crítico do estado da agricultura na ilha de São Nicolau. Na sua opinião, o maior entrave ao desenvolvimento agrícola é “a falta de transporte para escoamento de produtos”. Esta socióloga de formação, que está a estagiar no MADRRM, garante que “apesar das mulheres participarem no trabalho agrícola, ainda são os homens que tomam as decisões”.

Porque é que decidiu estagiar no MADRRM, sendo socióloga?
Foi uma oportunidade que surgiu. Quando terminamos o curso, ficamos à procura do primeiro emprego e então fizeram-me a proposta se eu queria estagiar lá e eu aceitei. Estou mesmo a trabalhar com uma socióloga, no Departamento de Extensão Rural e Estatística.
Apesar do pouco tempo que tem no Ministério (cerca de uma semana em finais de Maio), quais são para si os pontos fracos da agricultura na ilha?
É a nível do escoamento dos produtos para fora. Às vezes, produz-se em demasiada e acaba-se por estragar alguns produtos. Embora o que é produzido seja mais para consumo local e das famílias, começa a haver alguma dificuldade em vender os produtos porque as pessoas já têm parcelas em casa e já não vão comprar aos agricultores. Como São Nicolau tem um grande problema, neste momento, que é a falta de meio de transporte, os produtos ficam ali. Não há barco há alguns meses, de vez em quando aparece um barco da ilha do Sal. É só avião. Esse é o problema principal de S. Nicolau.
As mulheres participam no trabalho agrícola e nas associações locais?
Muito pouco. A zona que tem mais mulheres é a zona de Fajã, a zona mais agrícola, mas aí a maioria dos proprietários são homens. As mulheres são mais para o tempo da colheita e para a venda dos produtos. Tiram os produtos, vão à vila vender, mas mulheres que trabalham a terra são poucas.
Nas associações comunitárias, as mulheres participam, mas são mais os homens que tomam as decisões.
No atelier (Final de Maio, na cidade da Praia), fizemos várias reflexões e debates sobre a falta de participação da mulher ou não nas actividades associativas e na tomada de decisões. Para si, que tem formação de socióloga, deve ter sido interessante ter a oportunidade de pensar sobre estas questões.
Para mim, foi muito importante. Mesmo a nível de conhecimentos e também para troca de experiências. Há muita coisa que sei nesta área mas muito por alto. Hoje (último dia do atelier) gostei muito da parte jurídica: Praticamente não sabia de leis que regem a agricultura em Cabo Verde. Mas os três dias foram muito bons. Fiquei a conhecer as realidades de outras localidades do país e de outras ilhas. Acho bom que tenhamos conhecimento dessas outras realidades para que possamos melhorar a nossa própria realidade.
E o que pensa da integração da abordagem gênero nas políticas e programas? É possível fazê-lo com eficácia?
Acho que temos que muito que mudar. Em S. Nicolau como nos outros lugares, a agricultura, ou a posse da terra e da água, está mais virada para os homens. Acho que é um processo que deve mudar, mas que ainda vai levar um pouco de tempo. O atelier é importante porque adquirimos ferramentas para melhorar a questão do gênero mas penso que é um pouco difícil devido à mentalidade das pessoas. Acredito que devemos fazer um trabalho de formação, fazer, primeiro, a mudança nas pessoas.
Quando voltar vai começar a fazer essa mudança? Já tem alguma ideia para projectos?
Vou levar os conhecimentos para o Ministério de Ambiente. Já existem alguns projectos que abordam a questão do gênero: nesse momento está a decorrer na zona de Fajã um curso de 10 meses de agro-pecuária com uma forte aderência de mulheres. O curso é financiado pelo Millenium Challenge Account e pela MADRRM e dirige-se a meninas que terminaram o 12º ano e que não tiveram oportunidade de ir para a universidade. Acho que já é um ponto de partida para que se mude essa ideia de que são só os homens que devem ter a posse da terra.

15.6.10

Presidente da AMUPAL: “Mulheres querem ser mais interventivas, mas não têm tempo"

As mulheres chefes de família da região do Planalto Leste desejam ter um papel mais activo nas associações de desenvolvimento local, mas devido às inúmeras tarefas que têm em mãos – lida doméstica, criação dos filhos, acartar água, agricultura de subsistência, etc – acabam por não ter tempo para participar nas actividades associativas.

Maria Conceição Lopes, a presidente da Associação das Mulheres de Planalto Leste-AMUPAL afirma que as mulheres participam “muito pouco no trabalho da associação”, mas – justifica – a “zona é de sobrevivência difícil”. Ou seja, as mulheres têm “vontade de participar, mas torna-se difícil largar uma ou duas horas para depois voltar a pegar no trabalho da casa”- trabalho este que inclui tarefas pesadas e que, na maioria das vezes, são da exclusiva responsabilidade da mulher. “Muitas pessoas não têm a possibilidade de ter uma cisterna na casa e têm que ir buscar água e acartar lenha e enfrentam uma data de dificuldades. Há mulheres que ganham 200 escudos por dia e que passam muitas dificuldades. Elas têm vontade de ser mais activas, mas não têm tempo”, diz Maria Conceição Lopes.

A AMUPAL actua na área do perímetro florestal do Planalto Leste, uma unidade agro-ecológica com cerca de 6.000 hectares, segundo dados do Ministério do Ambiente. Na região, vivem cerca de 2980 pessoas, distribuídas por cerca de 493 agregados familiares.

Tal como a maior parte das associações locais na ilha, a AMUPAL foi criada com o objetivo de melhorar a vida dos agricultores e da comunidade, criando empregos e promovendo a formação, numa ilha onde há uma excessiva dependência dos subsídios das FAIMO (Frentes de Alta Intensidade de Mão de Obra) e onde a taxa de analfabetismo é bastante superior à média nacional.

“Criamos a associação porque temos mais mulheres na comunidade, essencialmente mulheres chefes de família, e necessitávamos de reunir recursos para a educação, saúde e alimentação. Nestes cinco anos em que temos a associação temos conseguido alguns trabalhos e já fizemos projectos para empresas”, conta a presidente da AMUPAL.

A associação tem estado envolvida nas actividades de preservação do perímetro florestal, contribuindo, por exemplo, com a mão-de-obra para a construção de um posto de vigia, mas tem também participado em outras obras, como a construção de tanques, caminhos e diques, através dos contratos-programas assinados com os Ministérios do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos (MADRRM) e Ministério de Infra-estrutura e Transporte para execução de obras no domínio de agricultura, captação e construção de novas infra-estruturas de água para rega, conservação de solo e água e de caminhos vicinais e muros, entre outros.

Os 42 membros da associação são essencialmente mulheres chefes de família, com um nível de instrução muito baixo. “Trabalham na agricultura de sequeiro. Semeiam o milho, fazem tudo, na casa, na educação dos filhos. Temos uma grande taxa de analfabetismo, e é difícil as mulheres participarem em formações”.

Uma grande parte dos trabalhadores rurais de Santo Antão depende das FAIMO para a obtenção de um rendimento mínimo e o Planalto Leste não é excepção. A ilha é também a que tem maior percentagem de pobres em todo o país (45,6%, contra os 26,6% de taxa de pobreza a nível nacional). Maria Conceição Lopes confirma que muitas famílias estão dependentes dos rendimentos das FAIMO, tanto que “há agricultores que sem esses rendimentos não têm sequer a possibilidade de trabalhar a terra na altura das chuvas”.

“Às vezes, depende de quanto se ganha das FAIMO. Muita gente tem que pagar a alguém para trabalhar a terra. Se receber 200 escudos das FAIMO, não dá para pagar um homem na lavra, o que ficaria à volta dos 500, 600 escudos. Depois esse pagamento não vem mensalmente, às vezes atrasa um bocadinho. E se nesse ano não dá chuva ainda têm que comprar as sementes: feijão, milho, batata inglesa”, remata a presidente da AMUPAL.

14.6.10

“Se insistirmos na formação, vamos resolver todos os problemas de desigualdade”

Entrevista com Oumar Barry, coordenador do projecto de ordenamento e valorização da Bacia Hidrográfica de Picos e Engenhos, em Santiago.

Destaques

•Primeiro projecto do tipo em Cabo Verde é o de Picos e Engenhos
•População é beneficiada através do trabalho desenvolvido pelas associações locais
•Projecto das bacias permite rentabilizar produção agrícola
•Mulheres são parte activa das obras realizadas nas comunidades e nas ribeiras


Quando começou este projecto?Os projectos de ordenamento e valorização da Bacia Hidrográfica existem em várias ilhas, na seqüência da política actual para a modernização da agricultura que está a ser implementada pelo Governo, através do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos.
O nosso projecto em Picos e Engenhos começou em 2005. É o primeiro projecto deste tipo a iniciar e está já em curso. Mas, este ano, está previsto o arranque de outros cinco projectos.

Para quem não tem conhecimento nesta área, pode explicar o que é uma bacia hidrográfica?
Uma bacia hidrográfica é uma área geográfica em que a água cai numa área delimitada e se encontra no mesmo ponto para escoar para o mar. Normalmente, são ribeiras ou podem ser um conjunto de ribeiras.

E no vosso projecto que tipo de intervenção fazem nessa bacia?
Antes de mais, o projecto faz parte dos Grandes Programas do Governo na luta contra a pobreza no meio rural. Deste modo, o projecto tem como objectivo a mobilização, stockagem e distribuição de água para rega, a protecção do meio ambiente, a modernização da produção agrícola, a promoção da comunidade rural através de associações compostas pelos beneficiários do projecto.
No nosso projecto, o que fazemos primeiro é explicar às pessoas que trabalham e moram na bacia os objectivos do projecto, depois envolvemos a população, organizamo-la em vários grupos em função das ribeiras que constituem a bacia hidrográfica, que são as sub-bacias.

Como beneficiam exactamente a população?
A nível de cada ribeira, promovemos a criação de uma ou duas associações em função do tamanho da ribeira ou da vontade da população. A associação é toda organizada: tem assembléia-geral, conselho de direcção, todos os órgãos. Depois, identificamos, com a população, os trabalhos que devem ser feitos na sua área e os problemas. Definimos então o trabalho que vai ser feito, priorizamos o trabalho, definimos um custo financeiro e assinamos um contrato de execução com as organizações. É uma acção integrada de desenvolvimento, em que lidamos com tudo: distribuição da água, conservação dos solos, introdução de culturas, pecuária, silvicultura, formação, informação.

E fazem alguma distribuição de água e das terras?
Não, nós não mudamos a estrutura. Cada agricultor tem a sua parcela, e tanto pode ser proprietário ou rendeiro, mulher ou homem. O que nós fazemos é procurar o agricultor e perguntar se aceita mudar a técnica de produção para ganhar mais. Para isso, identificamos a área em que trabalha e os seus problemas, e propomos as soluções. Mas ele não vai trabalhar sozinho, e sim em conjunto com os outros agricultores.

Constroem, pelo que me diz, reservatórios, sistemas de bombagem de água. E rega gota-a-gota já chegou a Picos Engenhos?
Queremos instalar esse sistema e ter água para 160 hectares de regadio gota a gota. Actualmente, temos água mobilizada para 294 hectares.

Em sistema de regadio?
Antigamente aquela área era de sequeiro, ou era uma área que perdeu a água de rega e se tornou sequeiro. Mas agora queremos transformar outra vez em área de regadio.

No trabalho que fazem com as associações já integram a abordagem de gênero?É normal que falemos de gênero - em Cabo Verde, a maioria dos agricultores são mulheres. A relação que temos na bacia é de 53% de mulheres para 47 por cento de homens.

As estatísticas vêm mostrando que, de facto, há cada vez mais mulheres agricultoras e que os homens estão a abandonar a actividade.
Nós temos forçosamente que trabalhar com as mulheres. Até a associação que temos promovido, tem mais mulheres associadas do que homens. É verdade que na direcção da associação há uma persistência dos homens, mas mesmo assim temos muitas mulheres nos órgãos de direcção. E em cerca de 43 por cento das associações os presidentes são mulheres.

De facto, as mulheres estão mais presentes na agricultura mas isso não impede que continuem a ter menos direitos.
Não, eu não reflicto assim. Não digo que a mulher não tem o mesmo direito que o homem. Na lei cabo-verdiana, o homem e a mulher têm os mesmos direitos no meio rural.

E na prática?
Na prática, o direito é o mesmo. Mas o homem tem sempre a tendência a impor-se, quer mostrar que pode fazer melhor do que a mulher. No projecto, eu tenho visto o contrário. As melhores associações têm mulheres presidentes. Temos associações empreiteiras, em que as grandes obras, reservatórios de 2000 e 4000 mil metros cúbicos de água, são feitas por mulheres. Essas mulheres pedreiras fazem um trabalho muito melhor, em termos de perfeição, do que pedreiro tradicional. Na bacia de Engenhos, a maior parte da mão-de-obra contratada pela empresa portuguesa que está à frente das grandes obras do projecto é feminina.
Não podemos esquecer, que antigamente, no meio rural, os homens tinham mais escolaridade, e a escola é sempre um instrumento de dominação. Olhando hoje para os jovens agricultores, homens e mulheres que já têm a mesma formação prática e o mesmo grau de escolaridade, vemos nitidamente que essa disparidade começa a desaparecer.

E a tendência é para que venha a desaparecer por completo?
Eu acho pessoalmente que o problema da desigualdade no meio rural deve ser combatido com a formação. Se insistirmos na formação, vamos resolver todos os problemas de desigualdade que existem, já que a formação permite à mulher ter uma condição de trabalho igual à do homem.